sábado, 12 de março de 2005

Curas espirituais

De todas as crueldades da religião, e elas são muitas, talvez a mais cruel, tirando matar pessoas intencionalmente, seja a tal de "cura pela fé". À primeira vista, parece uma coisa inocente - o que você tem a perder? - mas, pensando bem, você perceberá como ela é horrível.

Através dos tempos, seres humanos vêm sofrendo de tudo o que é doença, de resfriado a câncer. Durante a maior parte da história humana, nós não tivemos a menor idéia do que causava nossos problemas de saúde. Nem uma pista. Como consequência, tentávamos adivinhar. Partindo de um objetivo lógico, ou seja, descobrir o que causava as doenças para podermos curá-las ou nos precavermos contra elas, acabamos chegando a algumas conclusões bastante ilógicas e completamente erradas.

É provável que tudo o que existe no universo conhecido já tenha sido acusado, pelo menos uma vez, de causar alguma enfermidade. A passagem de um cometa, a posição dos planetas, eclipses, estrelas cadentes, avistar um animal raro - tudo isto e outras coisas mais foram erradamente acusados de provocar doenças. E, naturalmente, surgiram superstições persistentes quanto a feitiços, encantos ou maldições jogados sobre nós por outras pessoas, as bruxas e feiticeiros.

A crença em bruxaria foi muito popular em quase todas as épocas. Doenças misteriosas pareciam ter causas misteriosas e, como sempre houve rivalidades entre grupos, eles sempre acabavam se acusando uns aos outros. Estas crenças poderiam até nos parecer engraçadas hoje em dia se não fosse pelo fato de que muitos inocentes, a maior parte mulheres, foram torturados e mortos numa tentativa de quebrar o "encanto" que tinha feito, por exemplo, as vacas pararem de dar leite ou as crianças terem febre. É claro, também, que toda essa barbaridade era cometida, muito piedosamente, em nome da religião.

A religião se misturou à medicina desde as origens. Os antigos egípcios, os antigos gregos e os antigos judeus apelavam todos a seus deuses em busca de alívio e cura. Achavam eles que eram deuses zangados que provocavam seus males e que a cura poderia ser obtida apaziguando esses deuses. O cristianismo manteve a tradição, ao ensinar que Jesus veio, entre outras coisas, para nos curar. Mais tarde, o poder de cura também foi atribuído a um sem número de santos, e até mesmo a suas relíquias, até que quase todos os lugares e objetos relacionados a eles passou a ser considerado como tendo poderes curativos.

No catolicismo de hoje, as relíquias já não têm o mesmo valor, mas atribuem-se aos santos e, principalmente, à Virgem Maria, poderes de cura, e é comum orar-se a eles. Da mesma forma, alguns lugares, dos quais o mais famoso é Lourdes, na França, atraem milhões de pessoas todos os anos em busca de curas fora do alcance da medicina. O santuário de Lourdes foi construído por causa da suposta aparição da Virgem Maria a uma menina de 14 anos da aldeia próxima, Bernadette Soubirous, em 1858 (por que a Virgem nunca aparece a adultos instruídos? Por que apenas a pastores analfabetos ou coisa assim?). De qualquer modo, a novidade se espalhou e cada vez mais gente acreditou, até se tornar hoje em dia o local que mais suplicantes atrai em todo o mundo.

A idéia de curar pela fé foi abraçada sem restrições por Mary Baker Eddy (1821-1910), que fundou o movimento da Ciência Cristã. De acordo com Eddy, não existem doenças, há apenas Erro. Se as pessoas pudessem encontrar a Verdade através de Deus, não haveria mais nenhuma doença. Seu movimento ainda é muito popular hoje em dia. Não me pergunte por quê.

Curandeiros pela fé proclamam ter curado milhões e milhões de pessoas confirmam suas alegações. A pergunta é "Por que?" Suas doenças foram curadas pela fé e pela oração apenas? Para responder a isto, temos que antes examinar as doenças. Eram graves? Há quanto tempo existiam? Tinham sido diagnosticadas por médicos diplomados? Os doentes receberam algum outro tratamento além da oração?

Para responder a estas perguntas, temos que examinar a natureza da doença propriamente dita. A maioria das doenças regride por si só, ou seja, se você não fizer nada, depois de algum tempo o problema desaparece. Em casos mais sérios, como artrite e câncer, a coisa costuma ser diferente. Entretanto, mesmo no caso de doenças graves, pode ocorrrer o que é conhecido como "remissão espontânea". Ninguém sabe ao certo como estas curas aparentemente inexplicáveis ocorrem (algumas vezes em definitivo), mas, à medida em que o sistema imunológico vai sendo mais bem conhecido pela ciência, mais vamos chegando à conclusão de que o corpo sempre tenta se auto-consertar.

Apesar disto, curandeiros pela fé ainda são muito populares (talvez devido à incapacidade de nosso sistema de ensino em transmitir conhecimentos científicos aos alunos). Alguns dos curandeiros mais conhecidos são Kathryn Kuhlman, Peter Popoff, Oral Roberts, Pat Robertson e Benny Hinn. Embora seus métodos variem um poucos, o princípio é o mesmo: se a sua fé é forte o bastante e se você reza com todo o seu coração, você pode ser curado. Eles afirmam serem capazes de curar tudo, inclusive câncer, artrite, paralisia e qualquer outra coisa que possa dar errado com a saúde humana.
Com uma ENORME exceção: ninguém, em tempo algum, jamais "curou" ou mesmo alegou ter curado membros ou olhos faltantes. Por quê? Pense um pouco. Um milagre é um milagre, não é? Se você pretende ser um canal para os poderes curativos de Deus, por que tem que se limitar a curas invisíveis? Será que Deus não é capaz de curar qualquer coisa que ele queira? Não me parece que a cura instantânea do câncer seja mais milagrosa que repor instantaneamente um olho. Então por que nunca acontece?

O santuário de Lourdes está cheio de tudo o que é tipo de muletas e cadeiras de roda, algumas das quais podem ser alugadas nas vizinhanças, mas nunca se viram próteses de pernas e braços ou olhos de vidro ou outras partes do corpo. Faz pensar, não? Por que Deus é tão seletivo quanto ao que ele cura?

Ainda há outro ponto em que ninguém repara, um ponto bem fraco nas afirmações dos curandeiros. Se você assistir a uma sessão de cura, verá que as pessoas ficam em pé diante do Poderoso Curandeiro e, quando o "poder de Deus" as toca, elas desmaiam, caindo para trás - sempre nos braços de um obreiro já a postos. Ufa! Quase, hein? Ainda bem que elas não caíram de costas no chão duro. Seria horrível se curar de câncer e morrer de concussão cerebral! Só que há um pequeno problema: ninguém desmaia para trás. Os joelhos cedem e a pessoa cai para a frente e para baixo. Pergunte a qualquer médico ou enfermeira. Estes falsos desmaios mostram que tudo não passa de um grande show de circo.

Um caso mais gritante de farsa foi o do tristemente famoso Peter Popoff, que já foi um curandeiro muito conhecido. Na década de 80, ele atraía os otários e os depenava, ganhando milhões. Ele vendia artigos maravilhosos: capas de chuva abençoadas, luvas abençoadas, sementes de mostarda abençoadas e assim por diante. Você também podia adquirir um lenço com o LEGÍTIMO SUOR DE POPOFF!!! Ligue djá! Eita! Suor abençoado! Eu me pergunto se ele não vendia bosta abençoada também.

Além disto, Popoff apelava para truques sujos. Seus ajudantes distribuíam cartões postais aos otários no auditório antes que o show começasse e lhes pediam que escrevessem seus dados pessoais, incluindo suas doenças, para que Popoff pudesse "orar" por eles. Os cartões eram então levados para os bastidores onde sua mulher, Liz Popoff, selecionava os casos mais interessantes. Durante o show, através de um rádio, ela os transmitia a um receptor na orelha do marido e ... milagre! Ele surpreendia a platéia ao receber, "diretamente de Deus", informações sobre as pessoas presentes. Em seguida, ele rezava e implorava e, finalmente, declarava essas pessoas curadas. Muito esperto!

Infelizmente para Popoff, James Randi, o famoso mágico e desmascarador de charlatões, começou a investigá-lo. Randi estacionava uma van próximo aos locais onde Popoff estava atuando e conseguiu interceptar e gravar Liz falando com o marido. Ele os denunciou ao governo americano mas ninguém estava interessado em investigar assuntos "religiosos". Novidade... Então, em 1986 e 1987, Randi foi ao Johnny Carson's Tonight Show e revelou, publicamente, o charlatão fraudulento que Popoff era.

Quando a merda atingiu o ventilador, a quadrilha de Popoff tentou consertar as coisas às pressas, distribuindo folhetos em que afirmavam que Randi era um enviado do Diabo e assim por diante. Mas ele nunca mais recuperou seu prestígio. Que pena, não? Você pode ler a história completa no livro de Randi, "Faith Healers". Foi um avanço, mas um avanço pequeno. As pessoas, em massa, continuam acreditando, basicamente porque estão desesperadas. Mas o que é terrível é que este tipo de farsa causa sérios problemas a muita gente. Se uma pessoa está com uma doença séria, a fraude não apenas não vai curá-la mas ela deixará de receber o tratamento apropriado e que poderia dar resultado. Pior ainda, se ela não melhorar, vão lhe dizer que sua fé não foi suficiente. Ou seja, ela leva a culpa por sua própria desgraça. Horrível. Inaceitável. Seus familiares também serão encorajados a ter esperança, só para vê-la destruída depois, além de serem igualmente acusados de não ter fé bastante. Desprezível. O charlatão nunca perde, só as vítimas. Se você fica bom, ele leva a fama. Se não fica, a culpa é sua.

Um dos exemplos mais horríveis que eu já li ("Looking for a miracle", por Joe Nickell) foi o de uma mulher com câncer na espinha que foi a um "Culto do Milagre", com a curandeira Kathryn Kuhlman. Quando Kuhlman anunciou que "alguém aqui ficou curado de câncer", a mulher correu para o palco toda feliz, foi abraçada pela curandeira e jogou fora o colete que há meses sustentava sua frágil espinha. Ela sabia que estava curada (adrenalina e confiança são uma mistura poderosa). Na manhã seguinte, ela acordou cheia de dores, com medo de se mexer. Em 2 meses estava morta. As vértebras, enfraquecidas pelo câncer, não tinham resistido ao esforço da "cura". Deus seja louvado!

Explorar as aflições humanas e propositalmente roubar das pessoas suas esperanças, sua saúde e seu dinheiro, simultaneamente, é uma das maiores maldades em que se pode pensar. Para a maior parte de nós, é difícil imaginar tanta ganância e dureza de coração. Eu quase desejo que houvesse um inferno só para esses curandeiros sem escrúpulos. Mas não há. E eu fico com pena das crianças.

Traduzido por Fernando Silva

3 comentários:

  1. Frases de R.R. Soares, líder da Igreja Universal da Graça de Deus (uma dissidência da Igreja Universal do Reino de Deus, do "bispo" Edir Macedo):

    "Crentes verdadeiros NÃO FICAM DOENTES de jeito nenhum. Se ficar, ou é ação
    demoníaca ou consequência de pecado."

    "Quando crente tá gastando dinheiro com remédios e médicos, ele está fora da
    brecha e sob o jugo de satanás. O dinheiro que tal crente gasta em remédios
    é o que deveria ser dado na igreja e investir na 'obra de Deus'."

    "O crente que fica refém de medicamentos NÃO TEM FÉ, pois a Bíblia diz que
    Jesus levou sobre si todas as nossas enfermidades. Então, temos que
    'determinar (leia-se exigir)' ao Senhor que sua palavra se cumpra em nossas
    vidas."

    "Eu não aceito em hipótese alguma que crente sofra de males tipo câncer, por
    exemplo. Isso é maldição para ímpios, nós somos herdeiros do céu e no céu
    não tem hospital (...)."

    "Crente doente é o mesmo que crente endemoniado."

    "Os crentes de outras denominações evangélicas, podem até ficar sob o jugo
    de doenças, agora aqui na Igreja da Graça não. Se entrou aqui doente, TEM de
    sair curado de qualquer jeito (...)."

    "Fé e medicina, andam em direção opostas."

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  2. Fernando,

    gostei muito desse texto e do texto "A falácia do livre arbítrio". Tenho um blog sobre ceticismo e ateísmo (www.theredpill.cjb.net) e gostaria de publicar esses textos lá, com os devidos créditos, evidentemente.

    Espero sua resposta,

    Guilherme Gall

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  3. Vai fundo. Minha intenção é atingir o máximo de pessoas.
    E é bom saber que alguém gostou :-)

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