domingo, 13 de março de 2005

O que fazer com tanto tempo livre


Nunca a humanidade teve tanta tecnologia para lhe facilitar a vida
e nunca teve tão pouco tempo livre.
Qualquer tempo que se libera é imediatamente preenchido por novas
ocupações. Lembro-me do anúncio de um debugger numa revista para
programadores. O tal programa permitiria que o trabalho fosse
terminado muito mais rápido, ficando o sujeito com tempo livre
para aproveitar a vida. E o fundo do anúncio mostrava um esquiador
descendo uma montanha coberta de neve.
Qualquer um sabe que, se o funcionário pode fazer o trabalho na
metade do tempo, o patrão lhe dará dois serviços para fazer naquele
mesmo tempo. Ou, no caso de um autônomo, ele sairá em busca de mais
serviço.
O fato de se fazerem 10 coisas por dia em lugar de passar o dia
todo ocupado com apenas uma implica num stress adicional:
administrar 10 coisas diferentes. Antigamente, eu começava um
serviço, levava algum tempo até pegar o jeito e depois era só
levar em frente. Agora eu tenho que pegar o jeito 10 vezes por
dia. Com tantas transições, termino o expediente com a vaga
impressão de que esqueci alguma coisa importante.
Antes dos computadores, esperava-se menos da apresentação dos
documentos. Eu escrevia um manual a lápis e o passava para uma
secretária que o batia à máquina. Ele me era devolvido para
conferência, eu indicava os erros, eram corrigidos, novo retorno,
até que eu decidia que estava bom o bastante (cheio de corretivo,
com letras espremidas).
Hoje espera-se que eu digite tudo - e tem que ficar perfeito, bem
diagramado, sem erros.
Antes, eu desenhava à mão e passava para um desenhista fazer no
poliéster com nanquim e régua T. O resultado final era mais ou
menos, cheio de manchas e sombras de fita adesiva (colar e cortar
eram termos literais).
Hoje, cada engenheiro tem que fazer seus próprios desenhos no
computador e entregar um serviço perfeito.
Antes, terminava-se um serviço e mandava-se tudo pelo correio para
o cliente. Tínhamos pelo menos 4 dias antes que voltasse a papelada
com comentários. Hoje, com a Internet, volta no mesmo dia, não
importando onde o cliente esteja.
Outra coisa que se perdeu foi a privacidade. Há poucos anos, quando
se saía para almoçar, o tempo era todo dedicado ao almoço. A pessoa
ficava fora de alcance. Hoje, no restaurante ou no carro, estamos
sempre disponíveis para ouvir os problemas que nos trazem. E, em os
tendo ouvido, responsáveis por resolvê-los (e estressados).
Em resumo, está longe o dia em que morreremos de tédio. É mais
provável que morramos de stress.

As diferenças entre a juventude e a velhice

As principais diferenças entre velhos e jovens são:

-Os jovens têm o futuro pela frente, um futuro aparentemente
infinito, onde tudo pode acontecer, onde há lugar para todas
as esperanças, onde há tempo para recomeçar mil vezes.
A velhice (ou maturidade) é uma realidade distante, um outro
universo, povoado por uma gente estranha que aparentemente nunca
foi jovem e não é capaz de entender a juventude. O jovem acha
que sabe tudo e que aquilo que ele não vê é porque não existe.

-O velhos (ou pessoas maduras) sabem o que o futuro lhes reserva:
a decadência física e mental, cujos sintomas já começam a se
manifestar, durante um longo crepúsculo sem esperanças de volta.
Não vai acontecer nada de radicalmente novo e, mesmo que eles
saibam que são capazes de mudar muita coisa, de largar tudo e
começar uma vida nova em outro lugar, estão imobilizados numa teia
de compromissos assumidos e responsabilidades.

-Cada decisão que se toma limita as possibilidades futuras; o jovem
ainda não decidiu nada, portanto todas as opções estão diante de si.
Mesmo depois de escolher alguma coisa, ainda acredita que pode voltar
atrás se não der certo, que haverá sempre tempo para recomeçar.
Quando ele menos espera, já terminou a universidade (e não tem mais
disposição para começar tudo de novo em outra especialidade, pois
sabe como foi difícil se formar). Com isso, ele está preso à profissão
que escolheu. Além disso, percebe que já não é mais um adolescente e que
precisa ganhar o próprio sustento. Com sorte, em breve estará trabalhando
e, mais uma vez, suas opções se estreitaram, pois agora está preso à
firma que escolheu. Com o tempo, ele acumula um patrimônio, se não
material, pessoal. Naquela firma ele tem um nome. Se mudar de emprego
terá que recomeçar do zero, como um desconhecido, até provar de novo
seu valor. Sua vida passa a girar em função do emprego; quer queira, quer não,
ele tem que estar lá todos os dias, assumindo suas responsabilidades. Sua
vida pessoal, seus sonhos, tudo aquilo que ele planejou fazer durante a
adolescência fica restrito ao pouco tempo livre que lhe resta, nos fins de
semana e nas férias curtas, utilizado mais para resolver os problemas
pessoais do que para se divertir (leia-se "viver").
Além disso, a essas alturas já terá contas a pagar e dependerá do salário.
Não pode mais abandonar o emprego e ficar à toa, como na adolescência.
Talvez se case - e suas responsabilidades aumentarão. Não estará mais sozinho,
terá que dar satisfações a alguém, até mesmo da sua vida pessoal. É possível
que mais cedo ou mais tarde tenha filhos, com o que sua vida estará
praticamente definida pelos próximos 20 anos, a menos que seja um irresponsável.

-Com sorte, e se trabalhar duro e economizar, acabará acumulando um patrimônio, uma
casa, uma poupança. Isto o tornará um conservador, mesmo que na juventude tenha
sido um socialista. Ele saberá o que lhe custou tudo o que conseguiu e rejeitará
qualquer idéia de repartir o fruto do seu trabalho duro com vadios. Terá medo de
aventuras, de perder tudo e ter que recomeçar do zero, só que, desta vez, sem o
entusiasmo, a fé e a disposição da juventude.
Os jovens que se engajam numa causa qualquer, com a intenção de mudar o mundo e
acabar com as injustiças, não sabem o risco que estão correndo. Os mais velhos
sabem e, em geral, se abstêm. É porisso que o progresso das causas sociais depende
tanto dos mais jovens. A cada geração, avança-se um pouco, ao custo de frustrações,
sacrifícios e ilusões perdidas por parte dos loucos que tentaram.

-Na juventude, tudo está sendo feito pela primeira vez. Tudo é novidade,
tudo é aventura. Pouco importa o desconforto de um acampamento, de uma
viagem de ônibus, de hotéis ou albergues de quinta categoria, de noites mal
dormidas em bancos de rodoviária. Há sempre a esperança de que algo de
interessante aconteça, que alguém apareça. Há um mundo a ser descoberto.
Na idade madura, o atrativo do novo diminui muito, as coisas que já foram
feitas já não atraem tanto. A pessoa já sabe o fim do filme e que a chance
de sonhos malucos se realizarem são reduzidas. Pode ser que apareça alguém
interessante, mas não vai acontecer nada. Não a um coroa gordo, enrugado e
careca.
Sua turma, quer queira, quer não, são outros como ele. Uma turma de jovens
nunca o aceitará.
A esperança e o otimismo gerados pela ignorância, inexperiência e a ingenuidade
já se foram. Sim, a pessoa tem sonhos, que viajar, ver coisas novas etc, mas quer
conforto. Quer ir de avião, quer um hotel confortável, com um banheiro decente e
não uma moita.

-Os interesses da juventude não duram para sempre. As coisas que pensávamos
que íamos apreciar pelo resto da vida mais cedo ou mais tarde são esquecidas,
tornam-se enfadonhas, repetitivas. Isto é difícil de entender para um jovem,
que se acha muito esperto, que se acha eterno, que a vida que leva jamais
mudará, que o mundo era diferente no passado mas que daqui para a frente será
do jeito dele, porque ele não é como seus pais. Mais cedo ou mais tarde se verá
levando a vida que eles levaram, ainda que num novo cenário.
Mais cedo ou mais tarde se defrontará com uma nova geração, trazendo outras
modas, outras músicas, outros hábitos, que nem saberá do que ele está falando
(e nem se interessará). E ele então descobrirá que ficou velho.

-Durante todos estes anos venho observando as pessoas do prédio em que moro.
No playground, as crianças pequenas correm de um lado para o outro e gritam.
No outro canto, garotos maiores jogam bola. Na frente do prédio, adolescentes
com ar entediado ficam sentados conversando.
De repente, percebo que as crianças pequenas estão jogando bola e que os
garotos maiores estão sentados na entrada do prédio. Os adolescentes que
lá estavam agora cruzam comigo no elevador, de manhã cedo, de paletó e
gravata, a caminho do emprego. A menina que brincava com o baldinho agora
empurra um carrinho de bebê.
Mais rápido do que eu ou eles pudéssemos perceber, tudo mudou. Os adolescentes
entediados, que olhavam para o mundo com desprezo, sentindo-se muito
superiores às crianças no playground com suas brincadeiras tolas e muito
mais espertas que os engravatados que só sabiam falar de trabalho, viram-se
de repente engravatados e presos a horários e compromissos.

-Os mais velhos têm experiência, acumulada durante anos, mas muito cedo
percebem que não podem mais usá-la, pois a saúde e a boa aparência se foram.
Tentam transmití-la aos mais jovens, mas estes não estão interessados na
companhia e nas histórias chatas de um velho. Não acreditam no que ele diz e
preferem cometer seus próprios erros.

-Os garotos de 15 anos gostam de meninas de 18 anos. Os rapazes de 25 anos
gostam de meninas de 18 anos. Idem idem, aos 30 anos, aos 40, aos 50.
Um dia, você está com 70 e olha para uma menina de 18 anos e é chamado de
velho tarado. Os outros interesses mudam com a idade, este não (mesmo porque
é um instinto e não uma preferência intelectual). Dentro de cada velho
acabado há um adolescente que não consegue entender o que foi que aconteceu
com seu corpo. Espera-se dele que seja assexuado, que procure pessoas de sua
idade, e é o que ele acaba fazendo, por falta de opção, por que está solitário,
mas não por gosto.
O garoto que sai pela estrada de mochila às costas e arranja uma namorada
sabe que ela gostou dele pelo que é. O velho rico no seu carrão de luxo
talvez arranje também uma menina nova, mas ele saberá que o que a atraiu foi
o dinheiro e poder que ele tem; se ele estivesse num banco de praça seria
invisível para ela.

-A juventude não está no espírito. Os jovens repetem isto, porque são jovens,
mas logo descobrirão a triste realidade. Talvez haja um espírito jovem preso
ao seu corpo decrépito mas ninguém está interessado.
Diga a uma menina que vai apresentá-la a um senhor de 60 anos e veja com que
entusiasmo ela reage.
Manifestar seu espírito jovem apenas evitará que o chamem de velho ranzinza.

-O jovem tem a turma dele, que vive junta, se diverte junta, namoram uns aos
outros. Com o tempo, cada um terá a sua vida, sua família, seus afazeres. Aos
poucos, deixarão de se encontrar com frequência e se esquecerão uns dos outros.
Alguns ficarão, é claro, e continuarão em contacto durante a idade madura. Cedo
ou tarde, entretanto, a velhice e as dificuldades de locomoção os prenderão cada
vez mais em casa. Um a um irão morrendo, até que os sobreviventes se vejam
completamente sós, sem amigos e sem parentes, andando como sombras que o mundo
frenético ao redor deles nem percebe, a não ser quando atrapalham (você sabe o
nome completo de seus avós? Quando foi que os visitou pela última vez?).

-Os jovens têm saúde e disposição e não sabem disto. Quando menos esperam, o
cabelo ficou branco e caiu, as rugas surgiram, a pele ficou flácida e manchada
e a barriga cresceu. Partes do corpo que eles nem sabiam que existiam começam
a doer e a dar problema. A escada que se subia em três pulos é agora um obstáculo
quase intransponível. As distâncias se tornam imensas. Tudo tem que ser planejado
em função da hora de tomar os remédios, do tratamento que não pode ser interrompido
e da dieta especial. Acampamento? Nem pensar. E se for preciso achar um médico?
Ficar no meio do mato, dormindo no chão, longe de um banheiro? E a dor nas costas,
e a dor nas juntas, e o reumatismo? Como recompensa por tudo que sofreram na vida,
ganham o descontrole da bexiga, perda de memória, senilidade e uma espinha mais
curta.
Os jovens também ficam doentes, mas sabem que vão se curar. Os velhos apenas
administram seus achaques, tentam minorar os incômodos. Sabem que não há volta.

-Na vida de cada pessoa existe um ponto de ruptura. É o momento a partir do qual
ela deixa de sonhar com um futuro ainda aberto e indefinido e passa a administrar
o que ainda lhe resta por viver. Na juventude, a estrada da vida só tem uma
extremidade visível, que é o início. A outra se perde na distância, na neblina do
futuro remoto. Um dia, entretanto, o percurso lhe surge inteiro diante dos olhos:
"Estou aqui e vou chegar, no máximo, até ali". E o trecho que falta já não parece
tão interessante, principalmente ao se considerar em que condições será percorrido.
A pessoa se dá conta da própria mortalidade, de que seu tempo é limitado. Pode até
vir a ficar mais rica e mais poderosa mas a decadência física inevitável lhe dá
uma outra visão das coisas, a certeza da transitoriedade, de que nada é para
sempre, de que seu tempo está acabando, de que não vai dar para fazer tudo.

-Sabedoria popular:
-"Se a juventude soubesse, se a velhice pudesse"
-"A juventude não deveria ser desperdiçada com os jovens".
-"A experiência é um farol voltado para trás".
-"Já não sou jovem o bastante para saber tudo".
-"Velhos não têm sonhos, têm saudades".
-"A festa de formatura da escola da vida é o velório" (Quino)
-"O tempo é um grande mestre, só que mata todos os alunos" (Hector Berlioz)

-Leitura correlata:
-"Viagem aos seios de Duília", de Aníbal Machado (em "Contos de aprendiz")
-"A vida por viver", de Affonso Romano de Sant'Anna (em "A vida por viver").

Por que prefiro viajar sozinho

Sei que há muita gente gregária, que precisa ter alguém a seu lado a maior parte do tempo, gente que tem horror a ficar só consigo mesma, diante de seus próprios pensamentos.
Para estes, viajar tem que ser em grupo, comentando tudo o que vê com os outros. Sua viagem só tem valor se alguém mais estiver lá para testemunhar o fato. Suponho até que alguns fiquem desorientados ao se ver sós numa cidade estranha, sem ninguém para tomar a iniciativa de ir a algum lugar, fazer alguma coisa. Provavelmente correrão para o primeiro telefone que encontrarem e ligarão para casa.

Minhas melhores viagens foram aquelas que eu fiz sozinho. Eu fui aonde quis, na hora em que quis, para ver ou fazer o que quis, pelo tempo que quis. Foram as MINHAS viagens, não as viagens dos outros em que, por acaso, eu estava presente.

Quando tive que viajar acompanhado, meus interesses eram sempre considerados "uma chatice, não sei que graça você acha nisto, vamos embora!". E lá ia eu ver o que os outros queriam, em geral alguma bobagem tipo "armadilha para turista" ou comprar bugingangas ou "recuerdos" cafonas.

Se você está com pressa, os outros são moles, se você quer fazer as coisas com calma, os outros são uns apressadinhos que enjoam de qualquer coisa após 2 minutos.

Se você acorda na hora marcada, os outros só aparecem uma hora depois, na maior cara de pau. Se você quer dormir mais um pouco e acordar sem pressa, os outros se levantam de madrugada e lhe chamam de preguiçoso.
Na hora do café da manhã, eles insistem em que todos devem ficar juntos: se você come pouco, tem que esperar que os outros acabem de se empanturrar com tudo o que há no buffet. Se você quer saborear com calma, provar um pouco de cada coisa, os outros ficam lhe apressando.

E sorte sua se os quartos forem separados, porque seu companheiro de quarto necessariamente ronca. Se você gosta de dormir cedo, ele vai assistir a tudo o que é besteira na TV até de madrugada. Ou vai chegar tarde da noite, acender todas as luzes e fazer o máximo de barulho antes de se deitar - e começar a roncar.

Se é você que quer ficar até tarde vendo alguma coisa boa na TV, vai se sentir mal por estar incomodando o outro. Se você toma banho primeiro, ele vai ficar batendo na porta, impaciente. Se ele vai primeiro, você encontrará um banheiro alagado, com toalhas encharcadas no chão.

Você leva uma bagagem mínima e espalha o mínimo possível suas coisas pelo quarto. Ele leva malas e mais malas e ocupa todos os espaços disponíveis. Na hora de ir embora, sua mala fica pronta em minutos, enquanto ele perde um tempão para guardar tudo e procurar as coisas que esqueceu onde deixou.

Falando em malas, sua experiência lhe mostra que não é necessário levar muita coisa e que malas são difíceis de carregar em aeroportos, para dentro e fora de trens que estão sempre na outra plataforma e prestes a partir, para dentro e fora de táxis e hotéis. Mas vai acabar carregando as malas dos outros - ou fazer papel de antipático. E não apenas as malas, mas a cacarecada que os outros insistem em comprar, em geral coisas que existem pelo mesmo preço e até com melhor qualidade em casa (mas não são "importadas"...).

Se não conseguir se desvencilhar dos outros, vai passar a maior parte da viagem dentro de lojas, aguardando que eles se decidam entre várias coisas igualmente idiotas e desnecessárias, que eles estão comprando para eles e também por encomenda de toda a família e dos amigos. Aliás, nunca divulgue suas viagens, ou vai ter que perder seu tempo com encomendas em geral dificílimas de achar (e ai de você se comprar errado) ou, novamente, bancar o antipático.

Menos mal se você viaja com gente experiente, ainda que chata, caso contrário, prepare-se para micos e vexames, ainda mais se você tiver que bancar o tradutor a cada instante e não puder deixar a pessoa sozinha. Já viajei com gente que falava alto demais (tudo bem, se for na Itália), que insistia em fotografar outras pessoas dentro de restaurantes ou na rua, gostassem elas ou não, que parava em saídas de Metrô, deslumbrada com a vista, e começava a filmar tudo, ignorando o incômodo que causava à multidão que mantinha retida atrás de si.
Ou insistia em mostrar ao mundo "a incrível musicalidade do povo brasileiro", como diz o João Ubaldo Ribeiro, e queria se enturmar onde quer que chegasse, confiante em que sua condição de brasileiro o tornaria automaticamente simpático e benvindo.

Dica: se você é um destes chatos, dê preferência a gente idosa. São solitários em qualquer lugar do mundo e tendem a receber bem quem quer que lhes dê atenção.

Resultado: em vez de se divertir, você acabará trabalhando como babá de adultos, tradutor e carregador de malas dos outros, além de alvo de reclamações por suas "manias" e antipatizado por não se mostrar sempre feliz e radiante e tentar se afastar dos outros.

E, ao voltar para casa, os outros contarão histórias incríveis sobre as trapalhadas que você teria feito, suas esquisitices e seu mau humor. Ou, como já me aconteceu, anunciarão a todos que, graças a eles, aquela foi a melhor viagem que você já fez.

sábado, 12 de março de 2005

Curas espirituais

De todas as crueldades da religião, e elas são muitas, talvez a mais cruel, tirando matar pessoas intencionalmente, seja a tal de "cura pela fé". À primeira vista, parece uma coisa inocente - o que você tem a perder? - mas, pensando bem, você perceberá como ela é horrível.

Através dos tempos, seres humanos vêm sofrendo de tudo o que é doença, de resfriado a câncer. Durante a maior parte da história humana, nós não tivemos a menor idéia do que causava nossos problemas de saúde. Nem uma pista. Como consequência, tentávamos adivinhar. Partindo de um objetivo lógico, ou seja, descobrir o que causava as doenças para podermos curá-las ou nos precavermos contra elas, acabamos chegando a algumas conclusões bastante ilógicas e completamente erradas.

É provável que tudo o que existe no universo conhecido já tenha sido acusado, pelo menos uma vez, de causar alguma enfermidade. A passagem de um cometa, a posição dos planetas, eclipses, estrelas cadentes, avistar um animal raro - tudo isto e outras coisas mais foram erradamente acusados de provocar doenças. E, naturalmente, surgiram superstições persistentes quanto a feitiços, encantos ou maldições jogados sobre nós por outras pessoas, as bruxas e feiticeiros.

A crença em bruxaria foi muito popular em quase todas as épocas. Doenças misteriosas pareciam ter causas misteriosas e, como sempre houve rivalidades entre grupos, eles sempre acabavam se acusando uns aos outros. Estas crenças poderiam até nos parecer engraçadas hoje em dia se não fosse pelo fato de que muitos inocentes, a maior parte mulheres, foram torturados e mortos numa tentativa de quebrar o "encanto" que tinha feito, por exemplo, as vacas pararem de dar leite ou as crianças terem febre. É claro, também, que toda essa barbaridade era cometida, muito piedosamente, em nome da religião.

A religião se misturou à medicina desde as origens. Os antigos egípcios, os antigos gregos e os antigos judeus apelavam todos a seus deuses em busca de alívio e cura. Achavam eles que eram deuses zangados que provocavam seus males e que a cura poderia ser obtida apaziguando esses deuses. O cristianismo manteve a tradição, ao ensinar que Jesus veio, entre outras coisas, para nos curar. Mais tarde, o poder de cura também foi atribuído a um sem número de santos, e até mesmo a suas relíquias, até que quase todos os lugares e objetos relacionados a eles passou a ser considerado como tendo poderes curativos.

No catolicismo de hoje, as relíquias já não têm o mesmo valor, mas atribuem-se aos santos e, principalmente, à Virgem Maria, poderes de cura, e é comum orar-se a eles. Da mesma forma, alguns lugares, dos quais o mais famoso é Lourdes, na França, atraem milhões de pessoas todos os anos em busca de curas fora do alcance da medicina. O santuário de Lourdes foi construído por causa da suposta aparição da Virgem Maria a uma menina de 14 anos da aldeia próxima, Bernadette Soubirous, em 1858 (por que a Virgem nunca aparece a adultos instruídos? Por que apenas a pastores analfabetos ou coisa assim?). De qualquer modo, a novidade se espalhou e cada vez mais gente acreditou, até se tornar hoje em dia o local que mais suplicantes atrai em todo o mundo.

A idéia de curar pela fé foi abraçada sem restrições por Mary Baker Eddy (1821-1910), que fundou o movimento da Ciência Cristã. De acordo com Eddy, não existem doenças, há apenas Erro. Se as pessoas pudessem encontrar a Verdade através de Deus, não haveria mais nenhuma doença. Seu movimento ainda é muito popular hoje em dia. Não me pergunte por quê.

Curandeiros pela fé proclamam ter curado milhões e milhões de pessoas confirmam suas alegações. A pergunta é "Por que?" Suas doenças foram curadas pela fé e pela oração apenas? Para responder a isto, temos que antes examinar as doenças. Eram graves? Há quanto tempo existiam? Tinham sido diagnosticadas por médicos diplomados? Os doentes receberam algum outro tratamento além da oração?

Para responder a estas perguntas, temos que examinar a natureza da doença propriamente dita. A maioria das doenças regride por si só, ou seja, se você não fizer nada, depois de algum tempo o problema desaparece. Em casos mais sérios, como artrite e câncer, a coisa costuma ser diferente. Entretanto, mesmo no caso de doenças graves, pode ocorrrer o que é conhecido como "remissão espontânea". Ninguém sabe ao certo como estas curas aparentemente inexplicáveis ocorrem (algumas vezes em definitivo), mas, à medida em que o sistema imunológico vai sendo mais bem conhecido pela ciência, mais vamos chegando à conclusão de que o corpo sempre tenta se auto-consertar.

Apesar disto, curandeiros pela fé ainda são muito populares (talvez devido à incapacidade de nosso sistema de ensino em transmitir conhecimentos científicos aos alunos). Alguns dos curandeiros mais conhecidos são Kathryn Kuhlman, Peter Popoff, Oral Roberts, Pat Robertson e Benny Hinn. Embora seus métodos variem um poucos, o princípio é o mesmo: se a sua fé é forte o bastante e se você reza com todo o seu coração, você pode ser curado. Eles afirmam serem capazes de curar tudo, inclusive câncer, artrite, paralisia e qualquer outra coisa que possa dar errado com a saúde humana.
Com uma ENORME exceção: ninguém, em tempo algum, jamais "curou" ou mesmo alegou ter curado membros ou olhos faltantes. Por quê? Pense um pouco. Um milagre é um milagre, não é? Se você pretende ser um canal para os poderes curativos de Deus, por que tem que se limitar a curas invisíveis? Será que Deus não é capaz de curar qualquer coisa que ele queira? Não me parece que a cura instantânea do câncer seja mais milagrosa que repor instantaneamente um olho. Então por que nunca acontece?

O santuário de Lourdes está cheio de tudo o que é tipo de muletas e cadeiras de roda, algumas das quais podem ser alugadas nas vizinhanças, mas nunca se viram próteses de pernas e braços ou olhos de vidro ou outras partes do corpo. Faz pensar, não? Por que Deus é tão seletivo quanto ao que ele cura?

Ainda há outro ponto em que ninguém repara, um ponto bem fraco nas afirmações dos curandeiros. Se você assistir a uma sessão de cura, verá que as pessoas ficam em pé diante do Poderoso Curandeiro e, quando o "poder de Deus" as toca, elas desmaiam, caindo para trás - sempre nos braços de um obreiro já a postos. Ufa! Quase, hein? Ainda bem que elas não caíram de costas no chão duro. Seria horrível se curar de câncer e morrer de concussão cerebral! Só que há um pequeno problema: ninguém desmaia para trás. Os joelhos cedem e a pessoa cai para a frente e para baixo. Pergunte a qualquer médico ou enfermeira. Estes falsos desmaios mostram que tudo não passa de um grande show de circo.

Um caso mais gritante de farsa foi o do tristemente famoso Peter Popoff, que já foi um curandeiro muito conhecido. Na década de 80, ele atraía os otários e os depenava, ganhando milhões. Ele vendia artigos maravilhosos: capas de chuva abençoadas, luvas abençoadas, sementes de mostarda abençoadas e assim por diante. Você também podia adquirir um lenço com o LEGÍTIMO SUOR DE POPOFF!!! Ligue djá! Eita! Suor abençoado! Eu me pergunto se ele não vendia bosta abençoada também.

Além disto, Popoff apelava para truques sujos. Seus ajudantes distribuíam cartões postais aos otários no auditório antes que o show começasse e lhes pediam que escrevessem seus dados pessoais, incluindo suas doenças, para que Popoff pudesse "orar" por eles. Os cartões eram então levados para os bastidores onde sua mulher, Liz Popoff, selecionava os casos mais interessantes. Durante o show, através de um rádio, ela os transmitia a um receptor na orelha do marido e ... milagre! Ele surpreendia a platéia ao receber, "diretamente de Deus", informações sobre as pessoas presentes. Em seguida, ele rezava e implorava e, finalmente, declarava essas pessoas curadas. Muito esperto!

Infelizmente para Popoff, James Randi, o famoso mágico e desmascarador de charlatões, começou a investigá-lo. Randi estacionava uma van próximo aos locais onde Popoff estava atuando e conseguiu interceptar e gravar Liz falando com o marido. Ele os denunciou ao governo americano mas ninguém estava interessado em investigar assuntos "religiosos". Novidade... Então, em 1986 e 1987, Randi foi ao Johnny Carson's Tonight Show e revelou, publicamente, o charlatão fraudulento que Popoff era.

Quando a merda atingiu o ventilador, a quadrilha de Popoff tentou consertar as coisas às pressas, distribuindo folhetos em que afirmavam que Randi era um enviado do Diabo e assim por diante. Mas ele nunca mais recuperou seu prestígio. Que pena, não? Você pode ler a história completa no livro de Randi, "Faith Healers". Foi um avanço, mas um avanço pequeno. As pessoas, em massa, continuam acreditando, basicamente porque estão desesperadas. Mas o que é terrível é que este tipo de farsa causa sérios problemas a muita gente. Se uma pessoa está com uma doença séria, a fraude não apenas não vai curá-la mas ela deixará de receber o tratamento apropriado e que poderia dar resultado. Pior ainda, se ela não melhorar, vão lhe dizer que sua fé não foi suficiente. Ou seja, ela leva a culpa por sua própria desgraça. Horrível. Inaceitável. Seus familiares também serão encorajados a ter esperança, só para vê-la destruída depois, além de serem igualmente acusados de não ter fé bastante. Desprezível. O charlatão nunca perde, só as vítimas. Se você fica bom, ele leva a fama. Se não fica, a culpa é sua.

Um dos exemplos mais horríveis que eu já li ("Looking for a miracle", por Joe Nickell) foi o de uma mulher com câncer na espinha que foi a um "Culto do Milagre", com a curandeira Kathryn Kuhlman. Quando Kuhlman anunciou que "alguém aqui ficou curado de câncer", a mulher correu para o palco toda feliz, foi abraçada pela curandeira e jogou fora o colete que há meses sustentava sua frágil espinha. Ela sabia que estava curada (adrenalina e confiança são uma mistura poderosa). Na manhã seguinte, ela acordou cheia de dores, com medo de se mexer. Em 2 meses estava morta. As vértebras, enfraquecidas pelo câncer, não tinham resistido ao esforço da "cura". Deus seja louvado!

Explorar as aflições humanas e propositalmente roubar das pessoas suas esperanças, sua saúde e seu dinheiro, simultaneamente, é uma das maiores maldades em que se pode pensar. Para a maior parte de nós, é difícil imaginar tanta ganância e dureza de coração. Eu quase desejo que houvesse um inferno só para esses curandeiros sem escrúpulos. Mas não há. E eu fico com pena das crianças.

Traduzido por Fernando Silva