sábado, 8 de agosto de 2009

O que há de verdade no relato do Êxodo?



Como é possível que 2 milhões de israelitas [*] tenham sobrevivido por 40 anos no deserto do Sinai, junto com seus animais e carregados com o tesouro dos egípcios [**]?

A região, até hoje, e mesmo com a tecnologia moderna, mal consegue sustentar uns 50 mil beduínos (no máximo; os números são imprecisos e variam de 5 a 50 mil), sendo que muitos deles vivem em cidades.

A arqueologia encontrou sinais de povos caçadores-coletores em vários lugares do Sinai, mas datam de antes e depois da época em que o Êxodo deveria ter ocorrido. Dessa época, só foram encontrados restos deixados pelos soldados egípcios e, mesmo assim, ao longo de uma antiga estrada ao norte, não onde os judeus teriam estado.

Como é que grupos pequenos, com dezenas ou centenas de nômades, deixaram vestígios detectáveis e 2 milhões de israelitas, durante 40 anos, não?

Alguns crentes alegam que os israelitas viviam fugindo e nunca passavam muito tempo no mesmo lugar, mas, segundo o Deuteronômio, eles passaram quase todo esse tempo nas proximidades do oásis de Kadesh-barnea, na parte leste do Sinai. O versículo 2:14 especifica: 38 anos. Não há sinais de 38 anos de permanência de 2 milhões de pessoas.

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* Êxodo 12:37 fala em 600.000 homens, o que, com mulheres e crianças, daria 2 milhões. Números 1:46 entra em detalhes, por tribo, e chega a 603.550.
A maioria dos apologistas cristãos concorda com esse número, embora apele para milagres para explicar sua sobrevivência.

** Êxodo
12:32 Levai também convosco os vossos rebanhos e o vosso gado, como tendes dito; e ide, e abençoai-me também a mim.
12:35 Fizeram, pois, os filhos de Israel conforme a palavra de Moisés, e pediram aos egípcios jóias de prata, e jóias de ouro, e vestidos.
12:36 E o Senhor deu ao povo graça aos olhos dos egípcios, de modo que estes lhe davam o que pedia; e despojaram aos egipcios.
12:38 Também subiu com eles uma grande mistura de gente; e, em rebanhos e manadas, uma grande quantidade de gado.

Mais sobre o assunto:

Esta é uma série de artigos sobre a historicidade do Deuteronômio.

Os patriarcas:
http://www.ebonmusings.org/atheism/otarch1.html

O Êxodo:
http://www.ebonmusings.org/atheism/otarch2.html

Josué:
http://www.ebonmusings.org/atheism/otarch3.html

É bastante detalhada e investiga cada alegação dos religiosos.

O arqueólogo Israel Finkelstein fala sobre período em que a Bíblia foi realmente escrita e por quem:
http://www.lanacion.com.ar/775002-el-exodo-no-existio-afirma-el-arqueologo-israel-finkelstein

O ocidente é poderoso porque é cristão?

Que valor intrínseco ao cristianismo teria levado ao progresso do ocidente?
Que parte da mensagem de Jesus teria possibilitado a criação dos impérios baseados em nações europeias que dominaram parte do mundo nos últimos 500 anos?

Jesus nunca pregou a favor da prosperidade material ou do poder político. Nunca defendeu o progresso das ciências. E Paulo, ao chamar de loucura a sabedoria deste mundo, não ajudou em nada. O cristianismo primitivo não tinha templos luxuosos ou uma hierarquia poderosa que interferia nos governos, pelo contrário, a pobreza e o desprendimento dos bens materiais eram uma virtude.

Os crentes (principalmente os católicos) vivem repetindo que foi graças à Igreja Católica que a cultura greco-romana foi preservada durante a Idade Média. Sim e não.

Sim, durante a Idade Média, a cultura se refugiou nos mosteiros enquanto o resto da Europa e até as cortes mergulhavam na ignorância e no analfabetismo.

Não, apenas apenas uma parte da cultura foi preservada, apenas a parte que interessava à Igreja. A cultura e a ciência grega se perderam, já que, depois de uma certa época, ninguém mais sabia grego, e só retornaram à Europa graças aos árabes, que as preservaram e expandiram. Alguém já parou para pensar por que os algarismos arábicos têm esse nome? Ou por que grande parte das estrelas mais conhecidas têm nomes derivados do árabe?

Mas por que a Igreja preservou parte da cultura? Em cumprimento a algum mandamento divino? Absolutamente não.

Acontece que o latim era a língua do cristianismo e da Igreja, assim como o árabe é a língua do islamismo. A liturgia era toda em latim, a Bíblia era em latim, os livros religiosos eram em latim, os documentos emitidos pela Igreja eram (e ainda são) em latim. Portanto, era necessário que o conhecimento do latim escrito e falado sobrevivesse. Isto, e não o amor pela cultura e ciência, preservou o latim e a parte do conhecimento antigo que lhes interessava.

Sim, claro, foi também graças à Igreja, em grande parte, que a cultura voltou aos poucos a se espalhar pela Europa por meio das escolas religiosas, onde as crianças da nobreza estudavam e, mais tarde, das universidades. Entretanto, o mesmo fenômeno, de certa forma, aconteceu no mundo árabe, dando origem a escolas que preservaram a cultura do mundo antigo e a desenvolveram ainda mais, levando-a depois de volta à Europa através de Portugal e Espanha e devido às influências recebidas durante as cruzadas.

Só que essas escolas foram criadas a partir do ano 778 pelo imperador Carlos Magno, que desejava restaurar a grandeza do império romano e precisava de administradores capacitados, e não por iniciativa da Igreja, que apenas foi encarregada da tarefa. Nessa época, inclusive, a maior parte dos clérigos era analfabeta.

E, também é claro, o progresso continuou fora dos mosteiros, independente da religião. As pessoas, cientistas ou não, continuaram descobrindo jeitos melhores e mais eficientes de se fazerem as coisas. Na Europa e no resto do mundo.

Não esquecendo que esse progresso poderia ter sido mais rápido se os cientistas não tivessem que obter aprovação eclesiástica antes de divulgar suas teorias ou que tivessem que verificar antes se elas não contrariavam a "verdade" das Escrituras (criar problemas com a Igreja era perigoso e fazia mal à saúde...).

Sim, o ocidente tornou-se poderoso nos últimos 500 anos, mas a questão é, repito: qual foi a influência da doutrina cristã neste processo? O que há nas palavras de Jesus que tenha levado a isto e que não encontramos no islamismo ou nas religiões da China, do Japão ou da Índia? O que há no cristianismo que vai garantir que esse poderio continue indefinidamente?

O domínio egípcio durou uns 3 mil anos e se acabou. O império romano durou uns 700 anos e também se acabou. Por que essa coisa indefinida denominada "ocidente" vai continuar no poder eternamente? Os impérios coloniais já desapareceram e o poder econômico já não é tão grande. Muitas nações cristãs nunca foram nem ricas nem poderosas e outras o foram, mas depois entraram em decadência.

O ocidente é hoje o que é devido a ser cristão ou devido a um conjunto de fatores entre os quais a religião é apenas um detalhe? E por que levou 1500 anos para que isto acontecesse?

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sacrifícios humanos na Bíblia

Os crentes costumam apresentar uma descrição detalhada das coisas horríveis que os cananeus faziam às próprias crianças. Alegam que isto dava aos judeus o direito de exterminá-los e tomar-lhes as terras.

A verdade é que os judeus não eram melhores que os vizinhos. A Bíblia mostra que faziam sacrifícios humanos com frequência, inclusive por ordem de Javé, em alguns casos.

Nos outros, não fica claro se a ira de Javé se devia aos sacrifícios em si ou ao fato de serem oferecidos a outros deuses.

Sacrifícios por ordem de Javé ou oferecidos a ele:

Êxodo 22
28. Não atrase em oferecer de sua abundância e de sua fartura. Entregue a mim o seu filho primogênito;
29. faça o mesmo com seus bois e ovelhas: a cria ficará com sua mãe durante sete dias e, no oitavo, você a entregará para mim.
30. Vocês estão consagrados a mim: não comam carne de animal que tenha sido dilacerado no campo; joguem para os cães.


Pode-se alegar que o trecho não fala em sacrificar, mas ele junta bois, ovelhas e filho primogênito no mesmo pacote. E o que seria "entregar a Javé" numa cultura onde Abraão nem piscou quando Deus lhe pediu o sacrifício do filho único?

Todavia, nenhuma coisa consagrada, que alguém consagrar ao SENHOR de tudo o que tem, de homem, ou de animal, ou do campo da sua possessão, se venderá nem resgatará; toda a coisa consagrada será santíssima ao SENHOR.

Toda a coisa consagrada que for consagrada do homem, não será resgatada; certamente morrerá.
Levítico 27:28-29
Levítico 27
28 Todavia, nenhuma coisa consagrada, que alguém consagrar ao SENHOR de tudo o que tem, de homem, ou de animal, ou do campo da sua possessão, se venderá nem resgatará; toda a coisa consagrada será santíssima ao SENHOR.
29 Toda a coisa consagrada que for consagrada do homem, não será resgatada; certamente morrerá.


Trecho bem claro: "homem ou animal" e "certamente morrerá".

Outras traduções são ainda mais explícitas:

"Nenhuma pessoa que dentre os homens for devotada será resgatada; certamente será morta."

ou

"Nenhuma pessoa devotada, que dentre a humanidade seja devotada à destruição, pode ser remida. Sem falta deve ser morta."
Todavia, nenhuma coisa consagrada, que alguém consagrar ao SENHOR de tudo o que tem, de homem, ou de animal, ou do campo da sua possessão, se venderá nem resgatará; toda a coisa consagrada será santíssima ao SENHOR.

Toda a coisa consagrada que for consagrada do homem, não será resgatada; certamente morrerá.
Levítico 27:28-29

Ezequiel 20
24. porque não praticaram as minhas normas e desprezaram os meus estatutos, profanaram os meus sábados e se tornaram admiradores dos ídolos de seus antepassados.
25. dei a eles estatutos que não eram bons e normas que não lhes dariam vida
26. os contaminei com as ofertas que faziam, quando imolavam seus filhos mais velhos. Eu os amedrontei, para que reconhecessem que eu sou Javé.

Aqui, Javé permite que os judeus continuem com os sacrifícios, embora os condene, e lhes dá leis más, o que é difícil de compreender quando se trata de um deus de infinita bondade.

Juízes 11
30. E Jefté fez uma promessa a Javé: "Se entregares os amonitas em meu poder,
31. então, quando eu voltar vitorioso da guerra contra eles, a primeira pessoa que sair para me receber na porta de casa, pertencerá a Javé, e eu a oferecerei em holocausto".
32. Jefté partiu para guerrear contra os amonitas, e Javé os entregou em seu poder.
33. Jefté os derrotou desde Aroer até Menit, tomando vinte cidades, e foi até Abel-Carmim. Foi uma grande derrota, e os amonitas foram dominados pelos israelitas.
34. Jefté voltou para a sua casa em Masfa. E foi justamente sua filha quem saiu para recebê-lo, dançando ao som de tamborins. Era sua filha única, pois Jefté não tinha outros filhos ou filhas.
35. Logo que viu a filha, Jefté rasgou as vestes, e gritou: "Ai, minha filha, como sou infeliz! Você é a minha desgraça, porque eu fiz uma promessa a Javé e não posso voltar atrás".
36. Ela respondeu: "Pai, se você fez promessa a Javé, cumpra o que prometeu, porque Javé concedeu a você vingar-se dos inimigos".
37. E pediu ao pai: "Conceda-me apenas isto: deixe-me andar dois meses pelos montes, chorando com minhas amigas, porque vou morrer virgem".
38. Jefté lhe disse: "Vá". E deixou-a andar por dois meses. Ela foi pelos montes com suas amigas, chorando porque ia morrer virgem.
39. Dois meses depois, ela voltou para casa, e seu pai cumpriu a promessa que tinha feito. A moça era virgem. Daí começou um costume em Israel:
40. todos os anos as moças israelitas saem por quatro dias para chorar a filha de Jefté, o galaadita.


Neste caso, não há uma ordem de Javé, mas o trecho deixa claro que era uma coisa natural oferecer sacrifícios humanos. Ninguém se espanta, nem mesmo a vítima.
Os crentes alegam que Jefté, na verdade, consagrou a filha ao serviço do templo e que, devido a isto, ela deveria permanecer virgem até morrer, mas este não era o costume deles. Só os levitas (e homens) serviam no templo e ela, no máximo, poderia prestar serviços externos e ocasionais, sem ficar presa ao templo.
Além disto, "holocausto" é uma palavra grega que significa "queimar por inteiro".

Números 31
40. dezesseis mil pessoas, das quais foi feito para Javé o tributo de trinta e duas pessoas.
41. Moisés entregou o tributo de Javé ao sacerdote Eleazar, conforme Javé lhe havia ordenado.
47. Dessa metade que pertencia aos filhos de Israel, Moisés tomou um tributo de dois por cento de pessoas e animais e o entregou aos levitas, que tinham funções no santuário de Javé, conforme Javé havia ordenado a Moisés.

Este trecho é menos claro, mas é de se perguntar que função os inimigos capturados teriam no templo, onde só entravam os levitas. É bem possível que eles e os animais fossem sacrificados no tal "tributo a Javé".

Josué 6
26. Nesse tempo, Josué fez um juramento: "Seja maldito por Javé quem reconstruir esta cidade: os alicerces lhe custarão o primogênito e as portas lhe custarão o caçula".
27. Javé estava com Josué, e sua fama correu por toda a terra.


O trecho acima, sobre Jericó, explica o trecho a seguir:

1 Reis 16
34.     Em seus dias Hiel, o betelita, edificou a Jericó; em Abirão, seu primogênito, a fundou, e em Segube, seu filho menor, pôs as suas portas; conforme a palavra do SENHOR, que falara pelo ministério de Josué, filho de Num.
Embora a linguagem usada tente disfarçar, se a maldição de Josué ainda estava valendo (e o trecho de 1 Reis a menciona), foi necessário sacrificar o primogênito e o mais novo, um nas fundações e outro nos portões.

2 Samuel 21
1. Durante o reinado de Davi houve um período de fome que durou três anos consecutivos. Então Davi buscou o conselho de Yahweh, que lhe disse: “A fome veio por causa da atitude de Saul e de sua família sanguinária, por terem assassinado os gibeonitas!”
[...]
6. Que nos sejam entregues sete dos seus descendentes, e nós os executemos perante Yahweh, na cidade de Gibeá de Saul, no alto no monte de Yahweh!”
[...]
9. E entregou-os nas mãos dos gibeonitas, e estes os enforcaram no alto do monte, diante de Yahweh. Os sete foram mortos ao mesmo tempo, nos primeiros dias da colheita da cevada.
[...]
14. E depois disso Deus se compadeceu do povo e respondeu as orações em favor da terra de Israel.

Trechos em que os sacrifícios são feitos a outros deuses, mas condenados:

2 Reis 16
3. Imitou o comportamento dos reis de Israel e chegou até a sacrificar seu filho no fogo, conforme os costumes abomináveis das nações que Javé tinha expulsado diante dos israelitas.
2 Reis 17
17. Sacrificaram no fogo seus filhos e filhas, praticaram a adivinhação e a magia, e se venderam para praticar o mal diante de Javé, provocando a ira dele.

2 Reis 21
6. sacrificou seu filho no fogo; praticou adivinhação e magia, estabelecendo necromantes e adivinhos. E multiplicando as ações que Javé reprova, ele provocou a sua ira. 

2 Reis 23
10. Josias profanou o Tofet que existia no vale de Ben-Enom, para que ninguém sacrificasse no fogo seu filho ou filha em honra do deus Moloc.
Ezequiel 20
30. Por isso, diga à casa de Israel: Assim diz o Senhor Javé: Vocês se contaminam como seus antepassados, e se prostituem com suas abominações,
31. trazem suas ofertas, oferecem seus filhos, queimando-os no fogo, e continuam até o dia de hoje a se contaminar com seus ídolos. E eu iria ainda atender vocês, casa de Israel? Juro por minha vida - oráculo do Senhor Javé - que eu, de maneira nenhuma, atenderei vocês!


2 Crônicas 33
6. Sacrificou no fogo seus próprios filhos no vale dos filhos de Enom. Praticou adivinhação e magia, estabelecendo necromantes e adivinhos. Ele provocou a ira de Javé, multiplicando as ações que Javé reprova.

Levítico 20
1. Javé falou a Moisés:
2. "Diga aos filhos de Israel: Todo filho de Israel ou imigrante residente em Israel, que entregar um de seus filhos a Moloc, será réu de morte. O povo da terra o apedrejará,
3. e eu me voltarei contra esse homem e o eliminarei do seu povo, pois, entregando um de seus filhos a Moloc, contaminou o meu santuário e profanou o meu santo nome.


Jeremias 7:31

31. Depois construíram os lugares altos de Tofet, no vale de Ben-Enom, para queimar no fogo filhos e filhas, coisa que não mandei e que jamais passou pela minha mente.

Jeremias 19
4. Porque eles me abandonaram e profanaram este lugar, queimando incenso a outros deuses, que vocês não conheciam, nem seus antepassados, nem os reis de Judá. Encheram este lugar com sangue de inocentes,
5. e construíram lugares altos para Baal, para queimar seus filhos no fogo em holocausto a Baal. Uma coisa dessas eu nunca mandei fazer, nem falei, nem me passou pelo pensamento.


Jeremias 32

35. construíram lugares altos a Baal no vale de Ben-Enom, para aí queimar seus filhos e filhas em honra de Moloc: coisa que eu nunca mandei, nem jamais passou pelo meu pensamento. Eles fizeram abominações semelhantes, ensinando Judá a pecar.

Ezequiel 16
20. Você pegou até seus próprios filhos e filhas, que você havia gerado para mim, e os sacrificou, para que essas estátuas os devorassem. Como se as suas prostituições não fossem o bastante,
21. você ainda matou meus filhos, e os entregou para serem queimados em honra dessas estátuas.


Salmos 106
37. Sacrificaram aos demônios seus filhos e suas filhas.
38. Derramaram o sangue inocente, e profanaram a terra com sangue.

domingo, 24 de maio de 2009

Origens babilônicas do mito de Adão e Eva



Grande parte da Bíblia, principalmente o Gênesis, se baseia em uma mistura de mitos babilônicos. Em lugar de começar do zero, os hebreus os adotaram como se fossem um fato da vida, mas, em repúdio ao politeísmo dos mitos originais, eles os reinterpretaram e, em muitos casos, inverteram o contexto e o significado das narrativas.

No mito sumeriano original, por exemplo, os deuses maiores (Anunnaki) escravizaram os deuses menores (Igigi) e os forçaram a trabalhar a terra para produzir comida para eles. Um deles (We-ila) se revoltou e foi morto. Sua energia vital foi aplicada ao barro e dele foi criado o homem, que passou a cultivar a terra no lugar dos Igigi, e estes tiveram então direito à ociosidade junto aos Anunnaki.

Desta forma, os sumerianos explicavam a rebeldia, a desonestidade e a luxúria do homem: eram características herdadas dos deuses, que o haviam criado, e não culpa dele, criado à imagem divina.
Os hebreus adotaram este mito, mas inverteram as coisas: Deus era um ser perfeito e criou o homem perfeito, mas este, por iniciativa própria, se rebelou, mentiu, pecou. A culpa seria então do homem, não de Deus.
Para os sumerianos, o homem era vítima dos deuses e não perdeu a inocência porque nunca a teve. Para os hebreus, o homem, criado inocente, torna-se o vilão e a vítima é Deus.

Para os sumerianos, os deuses viviam em cidades como Uruk, cercada de terras cultivadas que produziam os alimentos. As terras selvagens que ficavam além eram denominadas eden ou edin e eram habitadas por animais selvagens, sem língua e sem cultura. Para a cultura sumeriana, a vida nas cidades era o ideal, não a selvageria do eden. Em outras versões, eden/edin era o local onde a humanidade trabalhava sem parar para alimentar os deuses. Para os antigos, o atual desejo dos cristãos e mussulmanos de voltar para o Eden pareceria loucura.

O épico de Gilgamesh mostra uma das visões do eden/edin: Enkidu, criado por uma deusa, vivia como um animal, comendo capim e bebendo água do rio junto com os animais. Um caçador queixou-se aos deuses que Enkidu destruía suas armadilhas e então Shamhat, uma prostituta do templo, foi enviada para seduzí-lo. Enkidu nunca tinha visto uma mulher e se apaixonou por ela, esquecendo-se dos animais. No caminho para Uruk, Shamhat lhe deu pão e vinho (ou cerveja) para beber. Acostumado a comer capim e beber água, ele a princípio recusou, mas acabou convencido. Depois de comer, tornou-se humano e então aceitou as roupas que Shamhat lhe deu. Enkidu foi viver em Uruk e, com o tempo, tornou-se como um irmão para Gilgamesh.

Ao inverter este mito, os judeus transformaram o eden num lugar ideal, onde o homem foi posto por Deus para cuidar de seus jardins, vivendo em paz com os animais. Após o pecado, ou seja, após comer da fruta proibida, percebeu que estava nu, foi expulso e teve que cultivar a terra.

Numa outra versão, Anu, o deus principal, proíbe que os Anunnak, deuses secundários, ensinem segredos aos homens, que devem ser mantidos ignorantes e trabalhando na lavoura. Os Anunnak, entretanto, concluem que os homens serão mais úteis se aprenderem os segredos do pão, do vinho, da cerveja e das roupas. Com este conhecimento, os homens passam a produzí-los para si e para os deuses. Inicialmente, os homens não consomem o pão e as bebidas, pois Ea, o deus que criou o homem, lhes disse que morreriam se o fizessem, mas outro deus - Enki, apelidado "ushumgal" ("A Grande Serpente", embora ele tivesse forma de homem) - lhes explica que não haveria problema. O curioso é que Enki parece ser uma outra versão de Ea, o que significa que Javé e o Diabo/Serpente são, na verdade, Ea/Enki, mas os hebreus recusaram a idéia de terem sido enganados por seu próprio deus e transformaram Ea/Enki num simples animal.

Há também uma versão em que o homem vivia no reino celestial e o deus principal, Anu, lhe oferece o alimento que lhe daria vida eterna, mas ele o recusa porque Ea/Enki lhe dissera que o alimento o mataria. O homem é então expulso do reino. Mais uma inversão, portanto, já que aqui é Deus que quer lhe dar vida eterna e é a serpente que o engana.

A Árvore do Conhecimento hebraica tem origem no pinheiro, cuja pinha a deusa Inanna (a "Senhora do Éden") comeu para adquirir conhecimento e a Árvore da Vida se origina do "pão da vida" que Anu oferece ao homem.

Querubins guardam a Árvore da Vida no Gênesis assim como querubins a guardavam na mitologia suméria.

Os deuses babilônicos eram mortais e precisavam comer 2 vezes ao dia e, para isto, exigiam sacrifícios de alimentos nos templos.
Javé também exige sacrifícios 2 vezes por dia no monte Sinai e, mais tarde, no templo de Jerusalém, o que é estranho, já que não é mortal nem material e não precisa de alimentos.

A criação de Eva a partir de uma costela de Adão deve ter vindo do mito sobre a deusa Nin-Ti, criada para curar a costela de Enki.

Se o texto acima parece confuso, é porque ele realmente é. Os mitos babilônicos tinham muitas versões, onde os deuses trocavam de nomes e de papéis, se fundiam em um só deus ou se dividiam em dois, onde cada "fato" era narrado de formas diferentes em contextos diferentes. E foi desta confusão que nasceu a Bíblia...

Mais sobre o assunto aqui:
http://www.bibleorigins.net/
Meio confuso porque o autor despejou fatos sem muita organização.

Um texto em português:
http://www.pauloliveira.com/MySiteOLD/Zigurate/Zigurates.htm

Este aqui é mais organizado e bem documentado, com muitas fotos:
http://www.dhushara.com/book/orsin/origsin.htm
O defeito é que o cara acredita na Deusa Mãe e o objetivo do site é detonar as religiões patriarcais, mas vale pela quantidade de material pesquisado.

 Por: Fernando Silva
 

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A moral provisória de Jesus

As regras de moral estão relacionadas aos costumes de cada povo. Elas nos permitem viver em sociedade, minimizando os conflitos com nossos semelhantes e tornando nossa vida mais fácil. Não são perfeitas, não são absolutas e muito menos imutáveis. Variam com a ocasião, com o lugar, com a época. De um modo geral, aperfeiçoam-se com o tempo.

Diante disto, o que pensar da moral pregada por Jesus? Seria ela o padrão absoluto de excelência, conforme acreditam os cristãos?

Em primeiro lugar, não há como discutir o que Jesus disse. Os filósofos gregos, muito antes dele, debateram a fundo este assunto. Podemos concordar com eles ou não, mas, pelo menos, eles apresentaram suas razões, eles nos deram argumentos que podemos analisar.

Jesus, ao contrário, apenas nos impôs sua doutrina, arbitrariamente, sem maiores explicações, por meio de promessas e ameaças. Ele não era um moralista. Sua missão era anunciar a vinda próxima do Reino de Deus e seu preceito básico era o de que os homens devem se dedicar inteiramente a Deus se quiserem entrar no céu:

"Arrependei-vos, pois o Reino dos Céus está próximo" (Mateus 04:17)

" 'Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?'
Jesus respondeu: 'Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, e com todo o seu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento.' "(Mateus 22:36-38).

Ou seja, seus mandamentos, em sua maior parte, se referem ao que é preciso fazer para se alcançar a recompensa em outra vida: obediência total e amor compulsório.

Não acreditar nele era o grande pecado:

"Se alguém não os receber bem, e não escutar a palavra de vocês, ao sair dessa casa e dessa cidade, sacudam a poeira dos pés.
Eu garanto a vocês: no dia do julgamento as cidades de Sodoma e Gomorra serão tratadas com menos rigor do que essa cidade." (Mateus 10-14-15).

Quando Jesus fala em ter fé, ele fala em obedecer sem discutir.

Se aceitamos algo sem analisar, mas apenas porque é o que se exige de nós, em obediência cega, renunciamos à busca da verdade, renunciamos ao uso de nossa mente. Recorrer à razão se torna um pecado.

Embora, em poucos casos, trate das relações interpessoais, sua moral pouco se importa com a melhoria da vida terrena. Isto até que faz sentido: Jesus afirmou que partiria, mas logo voltaria para estabelecer seu reino. Voltaria, de fato, enquanto "alguns dos que o ouviam ainda estivessem vivos" (Marcos 09:01).

Sua moral era uma moral provisória, a ser seguida no pouco tempo de existência que restava ao mundo.

Isto talvez explique por que ninguém se preocupou em registrar sua biografia para que os fatos chegassem às gerações futuras. Não haveria gerações futuras. Apenas décadas depois, quando seus discípulos, desiludidos, se deram conta de que ele só voltaria em futuro incerto e não sabido, é que começaram as tentativas de se produzir uma biografia.

E, como o tempo que restava à humanidade era curto, faziam sentido mandamentos do tipo "abandonar a família, os pais, a mulher e os filhos" ou "vender tudo o que se tem e dar aos pobres" (Lucas 18:22). Ou, um absurdo para os costumes da época, "deixar o pai insepulto e seguir a Jesus".

Mas ... e o Sermão da Montanha, alguns dirão? Mais uma vez, não passa de promessas a serem cumpridas numa outra vida.

Como é possível se ter uma vida digna se a gente dá a outra face a quem nos bate, se a gente também entrega a camisa a quem nos pediu o casaco, se a gente anda duas milhas quando alguém nos manda andar uma?

Temos, é claro, a "Regra de Ouro", mas ela nada tem de original. Foi enunciada por Confúcio 500 anos antes de Cristo e já fazia parte da Lei, como o próprio Jesus afirma em Mateus 07:12.
Ou "ama teu próximo como a ti mesmo" (Mateus 22:39), que é uma cópia de Levítico 19:18.

Além disto, era uma moral sectarista, limitada às "ovelhas perdidas de Israel", e o resto da humanidade que se danasse (Marcos 04:10-12, 13:22 e 13:27 ou João 06:37, 44 e 65 ou 17:02 e 06).

Isto fica claro neste trecho:

"Jesus enviou os Doze com estas recomendações: "Não tomem o caminho dos pagãos, e não entrem nas cidades dos samaritanos. Vão primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mateus 10:05-06)

Ou neste, embora, mais adiante, ele pareça se arrepender da própria grosseria:

"Jesus respondeu: 'Eu fui mandado somente para as ovelhas perdidas do povo de Israel'. Mas a mulher, aproximando-se, ajoelhou-se diante de Jesus, e começou a implorar: 'Senhor, ajuda-me'
Jesus lhe disse: 'Não está certo tirar o pão dos filhos, e jogá-lo aos cachorrinhos'" (Mateus 15: 24-26)

Para piorar, alguns dos mandamentos de Jesus são absurdos, já que exigem que eliminemos nossos sentimentos: "não olhar para as mulheres com desejo" (Mateus 05:27-28) ou "não sentir raiva do irmão" (Mateus 05:21-22). Ora, podemos controlar como reagimos a nossos sentimentos, podemos controlar nossas ações, mas não podemos anular nossos sentimentos mais íntimos sem anular nossa personalidade. Entretanto, Jesus declara que até os sentimentos são pecaminosos. Para seguir a Jesus, temos que destruir aquilo que somos, sentimos e pensamos.

Inversamente, ele nos ordena "amar a Deus" e "amar ao próximo", como se sentimentos pudessem ser ligados ou desligados voluntariamente. Sentimentos surgem a partir de valores que observamos nas pessoas. Se não os observamos, como fazer para despertar esses sentimentos sem mentir para nós mesmos? Mas Jesus não nos dá essas respostas, apenas nos ameaça com castigos eternos se não obedecermos.

Como podemos nos tornar "mansos e humildes" a não ser destruindo nossa autoestima e nossa vontade própria? Por medo do castigo?

Como é possível se contruir uma civilização se o sofrimento é uma virtude, se a prosperidade e a felicidade são condenáveis?

"Felizes de vocês se os homens os odeiam, se os expulsam, os insultam e amaldiçoam o nome de vocês, por causa do Filho do Homem. Alegrem-se nesse dia, pulem de alegria, pois será grande a recompensa de vocês no céu, porque era assim que os antepassados deles tratavam os profetas. Mas, ai de vocês, os ricos, porque já têm a sua consolação! Ai de vocês, que agora têm fartura, porque vão passar fome! Ai de vocês, que agora riem, porque vão ficar aflitos e irão chorar!" (Lucas 06:22-25)

"Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; o que resta é que também os que têm mulheres sejam como se não as tivessem" (1 Coríntios 07:29)

Fica claro que estes eram mandamentos para os poucos anos que ainda restavam ao mundo, e não um guia moral para uma civilização que se estenderia por muitas gerações, indefinidamente.
Sua validade é questionável.

Inspirado em "Atheism-The case against God", por George H. Smith.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Eu era ateu, mas encontrei a Jesus

Com frequência, encontramos crentes que se dizem ex-ateus e acham que, por isto, têm autoridade para dizer que nós, ateus, estamos errados. Afinal, eles já foram como nós e usavam os mesmos argumentos que usamos para criticar a religião.

Na minha opinião, esses supostos ex-ateus se desconverteram por duas possíveis razões:

- Encontraram um argumento novo e devastador a favor de alguma religião.
- Desde o início, queriam se entregar à religião, mas o lado racional de suas mentes não o permitia.

Acontece que eles ainda não me mostraram nenhum argumento novo nem devastador. Alguns escrevem longos e tediosos livros para explicar sua conversão, cheios das mesmas afirmações velhas e batidas: "O universo é complexo demais para ter surgido assim sozinho" ou "Sem Deus, a vida não teria sentido" ou "Não consigo aceitar que a gente morre e acabou". No fim, tudo se resume a: "Tenho fé".

Alguns ainda apelam para "Sinto a presença de Deus. Ele me enche de felicidade", mas sentimentos são pessoais e intransferíveis e não têm valor como argumento.

A segunda hipótese me parece mais provável: essas pessoas sempre tiveram necessidade de acreditar em alguma coisa. No início, a consciência do ridículo e o espírito de rebeldia adolescente foram mais fortes. Com os anos, começaram a ceder e, um dia, agarrando-se a um pretexto qualquer, permitiram-se acreditar.

Elas não são diferentes dos gordos que sempre inventam uma desculpa para fugir do regime, mesmo sabendo das consequências. Ou dos fumantes que vivem prometendo que "depois deste não fumo mais". Ou do alcoólatra arrependido que sempre volta à bebida. Dão mais valor à satisfação que à lógica.

Mas os ex-ateus têm uma vantagem: enquanto que gordos, fumantes e bêbados são malvistos por quase todos e até por eles próprios, ter uma religião é o comportamento socialmente aceito. Ao se converter, deixam de ser marginais e são acolhidos pelos demais seguidores da seita que "escolheram", subindo no conceito até mesmo dos membros de outras religiões rivais, já que todas elas abominam os ateus.

O que eu posso dizer a esses "ex-ateus" é que, assim como não fumo, não bebo e cuido da minha alimentação, continuo não vendo motivos racionais para aceitar um dos milhares de deuses disponíveis. Se eles se sentem mais felizes e seguros com sua fé, ótimo. Que continuem felizes. Entretanto, poupem-me do seu sorriso superior de "já fui como vocês, mas evoluí".

Do meu ponto de vista, eles apenas abdicaram da razão em nome do conforto psicológico.
Assim como eu não sou dependente de cigarro ou bebida e nem preciso viver empanturrado, também não preciso de religião. E, se eles são "ex-ateus", eu sou ex-religioso. Também já estive do outro lado, portanto, segundo a lógica deles, também sei do que estou falando e eles deveriam ficar impressionados com minha desconversão, certo?

Bem, parece que não. Eles acham que foram "ateus de verdade", mas que eu nunca fui "religioso de verdade". Seja lá o que for isto.

Por Fernando Silva