segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Movimento Modernista - Quando a Igreja Católica deu um tiro no pé

Na segunda metade do século 19, a Inquisição já não assustava ninguém. Foi a época em que Darwin publicou suas teorias sobre a evolução das espécies que contradiziam a Bíblia. Foi a época em que, usando a lógica para se analisarem obras clássicas como “A Ilíada” à luz dos conhecimentos históricos e geográficos disponíveis, cidades como Troia foram localizadas e desenterradas. Isto levou arqueólogos, historiadores e outros intelectuais a analisar todo e qualquer documento antigo em busca de segredos escondidos. Inclusive a Bíblia, que até então estivera mais ou menos protegida da contestação.
 

Trecho do livro “A Inquisição” - Michael Baigent & Richard Leigh - Editora Imago

Capítulo 12 - O Santo Ofício

Se se achava particularmente vulnerável no mundo secular, porém, a Igreja julgava-se recém-armada e equipada em outras esferas. A doutrina da infalibilidade papal fornecia, quando nada, um baluarte aparentemente inexpugnável contra os avanços e invasões da ciência. Para os fiéis, pelo menos, a infalibilidade se antecipava e impedia qualquer debate. Embora a Igreja não derrotasse a adversária, era poupada de ser derrotada ela própria, por ser impedida de ao menos entrar na arena. Para os católicos devotos, a infalibilidade papal constituía uma nova “rocha” contra a qual a maré da ciência, lançada pelo demônio, só podia quebrar-se em vão.

Contra a ciência, a Igreja podia assim empenhar-se numa contínua série de ações de contenção. Contra os outros principais adversários no mundo das ideias - isto é, contra as pesquisas dos estudos históricos, arqueológicos e bíblicos - acreditava que podia passar à ofensiva. Essa convicção ia levar ao vexaminoso embaraço do Movimento Modernista católico.

O Movimento Modernista surgiu do desejo específico de enfrentar as depredações causadas na escritura por comentaristas como Renan, e pelos estudos bíblicos alemães. Com o Modernismo, a nova Igreja Militante - uma Igreja Militante na esfera da mente - tentou lançar uma contraofensiva. Os modernistas destinavam-se originalmente a empregar o rigor, a disciplina e precisão da metodologia alemã, não para contestar a escritura, mas para defendê-la e apoiá-la. Uma geração de estudiosos católicos foi trabalhosamente formada e preparada para fornecer ao Papado o equivalente a uma força de ataque acadêmica, um quadro determinadamente formado para fortalecer a verdade literal da escritura com toda a artilharia pesada das mais atualizadas técnicas e procedimentos críticos. Como os dominicanos do século XIII e os jesuítas do século XVI, os modernistas foram mobilizados para lançar uma cruzada que recuperasse território perdido.

Para frustração e humilhação de Roma, porém, o tiro da campanha saiu pela culatra. Quanto mais a Igreja se esforçava por equipar os jovens clérigos com os instrumentos necessários ao combate na moderna arena polêmica, mais esses mesmos clérigos passavam a desertar da causa para a qual haviam sido recrutados. O meticuloso escrutínio da Bíblia revelou uma pletora de discrepâncias, inconsistências e repercussões alarmantemente inimigas do dogma oficial - e lançou a doutrina da infalibilidade papal numa luz cada vez mais dúbia. Antes que qualquer um compreendesse o que se passava, os próprios modernistas já haviam começado, com suas dúvidas e questões, a corroer e subverter as posições mesmas que deveriam defender. Também passaram a contestar a centralização de autoridade da Igreja.

Assim, por exemplo, Alfred Loisy, um dos mais famosos e respeitados modernistas, perguntou publicamente como ainda se podia sustentar certas doutrinas de Roma na esteira da pesquisa bíblica e arqueológica contemporânea. “Jesus proclamou o advento do Reino”, afirmou Loisy, ecoando o Grande Inquisidor de Dostoiévski, “mas o que adveio foi a Igreja.”’ Ele demonstrou que muitos pontos do dogma se haviam cristalizado como reações historicamente determinadas a acontecimentos específicos, em lugares e épocas específicos. Não deviam, portanto, ser vistos como verdades fixas e imutáveis, mas, na melhor das hipóteses, como símbolos. Segundo Loisy, premissas básicas da doutrina cristã como o Parto Virgem e a divindade de Jesus não eram mais sustentáveis como acontecimentos literais.

Em 1893, Loisy foi demitido de seu cargo de professor, mas isso não resgatou a situação porque ele continuou vociferante e prolífico. Em relação a Loisy e a seus colegas modernistas, a Igreja estava no dilema do incendiário preso no prédio a que ele próprio ateou fogo. O modernismo não era mais apenas embaraçoso. Demonstrava uma capacidade de tornar-se verdadeiramente perturbador e destrutivo.

Em 1902, nove meses antes de morrer, o Papa Leão XIII criou a Pontifícia Comissão Bíblica, para supervisionar e controlar a obra dos estudiosos católicos da escritura. Oficialmente, a tarefa da Comissão era “lutar... com todo o cuidado possível para que as palavras de Deus.., sejam escudadas não apenas de qualquer bafejo de erro, mas até mesmo de qualquer opinião precipitada”.2  Era assegurar que os estudiosos “se esforcem por salvaguardar a autoridade da escritura e promover sua correta interpretação”.3

2 comentários:

  1. Capítulo 13 - Como nasceu o Movimento Modernista Católico

    Até a primeira metade do século 19, a igreja católica mantinha sua autoridade quase absoluta
    sobre artigos de fé, além de considerável poder temporal sobre os países da Europa, inclusive
    pelo medo da Inquisição. Mas, na segunda metade, começou a decadência. Os progressos da
    arqueologia e a análise metódica e científica dos resultados fizeram que aos poucos as lendas
    fossem separadas da realidade. Heinrich Schlieman, um dos precursores, anunciou a existência
    da mítica cidade de Tróia com base no estudo criterioso dos épicos de Homero e, em 1868,
    encontrou-a exatamente onde havia previsto. Seu sucesso encorajou outras investigações e
    finalmente as próprias escrituras começaram a ser analisadas. O teólogo e historiador francês
    Ernest Renan começou a questionar a verdade literal dos ensinamentos cristãos, acabando por
    abandonar o seminário e sua vocação religiosa. Após pesquisas arqueológicas na Palestina e
    Síria, publicou "A vida de Jesus", onde descrevia Jesus como "um homem incomparável" mas mortal
    e não-divino. Este livro foi um dos seis mais vendidos em todo o século passado e nunca deixou
    de ser reeditado. Tornou Renan tão conhecido quanto Freud ou Jung são hoje e modificou a maneira
    de se estudar a Bíblia. Suas obras seguintes, "História das origens do cristianismo" e "História
    do povo de Israel" produziram uma mudança de mentalidade que a Igreja nunca mais conseguiu
    reverter. E ela continuava sob ataque: Darwin publicou "A origem das espécies" e a "Descendência
    do homem", inaugurando a fase do agnosticismo inglês (Thomas Huxley e Herbert Spencer). Outros
    filósofos, como Nietzsche e Schopenhauer, também desafiavam abertamente a doutrina cristã. No
    campo político, mais derrotas: a Prússia venceu a França na guerra de 1870-72 e criou o
    Império Alemão. Pela primeira vez na história moderna, uma potência militar européia ignorava a
    autoridade de Roma, oficializando a religião luterana. Em 1870, Garibaldi unificou a Itália e
    capturou Roma, reduzindo o território papal e separando Estado e Igreja.

    Em reação a este ataque vindo de todos os lados, o maior desde a reforma de Lutero, a Igreja
    tentou acordos políticos com potências nominalmente católicas, como os Habsburgos, sem sucesso.
    Em desespero, o papa Pio IX decretou, em 18 de julho de 1870, no Primeiro Concílio Vaticano,
    o dogma da infalibilidade papal. E, para fazer frente aos ataques devastadores às escrituras
    desfechados por cientistas e filósofos, a Igreja convocou seu próprio exército de estudiosos,
    a elite da intelectualidade católica, para enfrentar os adversários em seu próprio campo.
    Nascia assim o Movimento Católico Modernista.

    Seu objetivo era usar as armas do rigor e da precisão da metodologia germânica, não para
    desafiar as escrituras, mas para defender sua verdade literal. Uma geração de religiosos
    especialistas foi treinada e preparada à luz dos conhecimentos críticos mais recentes. O tiro,
    entretanto, saiu pela culatra. Quanto mais os jovens religiosos eram preparados para a luta,
    mais eles desertavam, ao perceber na Bíblia as inconsistências, discrepâncias e implicações
    contrárias aos dogmas de Roma. Os Modernistas logo começaram a questionar e subverter o que se
    esperava que defendessem. Alfred Loisy, por exemplo, um dos mais prestigiados modernistas,
    questionava abertamente a virgindade de Maria e a divindade de Jesus.

    ResponderExcluir
  2. Percebendo que haviam criado um monstro, o papa Leão XIII criou em 1903 a Comissão Bíblica Pontifícia para supervisionar o trabalho dos Modernistas. No mesmo ano, seu sucessor Pio X incluiu as obras de Loisy no Index e, em 1904, divulgou duas encíclicas opondo-se ao
    questionamento das origens e da história do cristianismo. Todos os professores católicos suspeitos de "tendências modernistas" foram demitidos.

    Entretanto, os Modernistas constituíam o grupo mais culto, erudito e articulado dentro da Igreja e não tardaram em revidar. Antonio Folgazzaro, em seu livro "O Santo" (1905), escreveu: "A Igreja Católica, se autoproclamando a fonte da verdade, hoje se opõe à procura dessa mesma verdade, quando seus fundamentos, os livros sagrados, as fórmulas de seus dogmas,
    sua pretensa infalibilidade passam a ser objeto de pesquisas. Para nós, isto significa que ela não tem mais fé em si mesma". Este livro foi imediatamente incluído no Index e a campanha da Igreja contra o movimento que ela mesma havia criado foi se intensificando.

    Em julho de 1907, o Santo Ofício publicou um decreto condenando oficialmente as tentativas dos Modernistas de questionar a doutrina da Igreja, a autoridade do papa e a veracidade histórica da Bíblia. Dois meses depois, o Modernismo foi declarado herético e formalmente proibido.
    O número de livros no Index cresceu drasticamente e uma nova censura, muito mais rigorosa, foi instituída. Comissários clericais controlavam o ensino com uma severidade doutrinal que não se via desde a Idade Média.

    Finalmente, em 1910, decretou-se que todos os católicos ligados ao ensino ou à prédica jurassem renunciar "a todos os erros do Modernismo". Escritores modernistas foram excomungados e os
    alunos de seminários e cursos de teologia eram proibidos até de ler jornais.

    (condensado de "As intrigas em torno dos manuscritos do Mar Morto", de Michael Baigent e Richard Leigh)

    ResponderExcluir