O Cânon Bíblico
Por Dalton Catunda Rocha - E-mail: daltonagre@uol.com.br
1- Como os textos bíblicos chegaram até nós?
Os textos bíblicos do antigo testamento começaram a serem escritos por
volta do ano mil antes de Cristo. Os judeus sempre mantiveram e ainda
mantêm, até hoje, uma tradição de copiar textos rigorosamente. Quando o
cristianismo surgiu, no século I, os textos bíblicos foram sendo
escritos e copiados. Por volta do ano 90 depois de Cristo, os textos do
Novo Testamento foram terminados e, ao longo dos séculos, foram sendo
escritos e copiados.
Vale destacar que, em tempos medievais, livros eram extremamente caros,
tanto pelo altíssimo custo do material para escrever, como pela ausência
de imprensa. Depois do colapso do Império Romano, o papiro que era o
único material barato de escrita, embora fosse perecível, desapareceu
dos mercados da Europa. Ficou o pergaminho, que era produzido com o
couro de ovelhas e cabras. Um rebanho de mais de uma centena de ovelhas
tinha que ter seu couro extraído para se produzir uma só bíblia. Tanto o
conhecimento científico, como a literatura antiga, história, leis,
peças teatrais e demais coisas da antiguidade só chegaram até nós pelo
imenso esforço de monges e monjas medievais, que dedicaram as suas vidas
a copiar livros.
No século IX, o papel, que havia sido inventado mais de 500 anos antes
na China, passou a ser produzido na Espanha muçulmana. Logo a seguir, o
papel foi mecanizado e melhorado na Europa católica de então. O papel
era muito mais barato que o pergaminho e os livros se tornaram mais
baratos. No entanto, somente com a imprensa de tipos móveis de
Gutenberg, no século XV, é que a bíblia passou a ser acessível à maioria
das pessoas.
Com a bíblia impressa, chegamos aos novos tempos, pois uma impressora
pode fazer centenas ou milhares de bíblias sem erros. Ademais, uma
bíblia impressa não somente é mais barata, como também é melhor que uma
bíblia manuscrita. E ainda por cima ela é uniforme.
2-Como foi feito o cânon bíblico?
Ainda no século I, já havia inúmeras formas de cristianismo. Antes da
chegada do ano 100 D.C., já existia cristianismo na Índia, Egito,
Itália, Grécia, Etiópia, Sudão, etc. Por óbvias dificuldades de
comunicação, era impossível que tivessem uma única relação de livros
inspirados. Os textos que fazem parte do que hoje chamamos de bíblia já
estavam prontos no ano 100 de nossa era, mas não existia uma bíblia
única cristã. Se alguém procurasse uma bíblia para comprar na Europa ou
qualquer outro lugar do mundo, nos séculos I e II, não acharia nenhuma à
venda.
Uma proposta de cânon do Novo Testamento apareceu no século IV e
supostamente datava do século II. Ela não listava como canônicos os
livros Apocalipse, II Pedro, II e III João e Judas. O Cânon Muratori não
cita a Epístola aos Hebreus como livro canônico. Por outro lado, este
mesmo Cânon Muratori cita o livro O Pastor de Hermas como canônico. O
mesmo Cânon Muratori cita o livro "Sabedoria" como canônico.
Quando o cristianismo foi legalizado pelo Imperador Constantino, no
século III, este mandou que as diferentes correntes do cristianismo
fizessem uma escritura de livros comum. Por meio de um concílio, os
bispos decidiram que o cânon seria de 76 livros. Este concílio não teve
unanimidade. No caso do livro do Apocalipse, por exemplo, os delegados
do Bispo de Roma foram contra a sua inclusão no cânon bíblico. Somente
no Concílio de Cartago, de 397, é que o livro do Apocalipse foi colocado
no cânon bíblico.
Esta primeira bíblia cristã foi chamada de bíblia de São Dâmaso, nome do
Papa sob a qual foi escrita. Evidentemente que os cristãos da Índia,
Etiópia, etc. em nada sequer puderam saber desta primeira bíblia cristã.
Mesmo na Europa, a esmagadora maioria do povo era analfabeta e
ignorante. Uma bíblia no século IV custava muito mais caro que o
patrimônio de mais de 98% da população europeia de então.
O cânon, ou a relação dos livros bíblicos, foi estabelecido por
concílios. Tudo por decisão humana. Nenhum livro bíblico diz quais
livros devem ser parte do cânon.
A história mostra que homens é que decidiram que livros fariam parte do
cânon. Basta lembrar que o livro Macabeus 4 está escrito no Codex
Sinaiticus e não faz parte nem da bíblia católica e nem da bíblia
protestante.
Na Europa católica, o Concílio de Florença em 1442 manteve esta mesma
bíblia, com 76 livros. O Concílio de Trento, no século seguinte, reduziu
a bíblia católica a 73 livros, decisão ainda mantida até hoje, pela
Igreja Católica. No Concílio de Jerusalém em 1672, a Igreja Ortodoxa
Grega reduziu a sua bíblia para 70 livros.
No século XVIII, as várias denominações protestantes concordaram que a
bíblia deveria ter 66 livros. Todas estas decisões quanto ao cânon
bíblico foram tomadas por pessoas, em concílios. Tudo por decisão
humana. Nem preciso dizer que cristãos etíopes têm, desde o século I,
seus próprios escritos sagrados.
3-Por que alguns livros não foram aceitos entre os oficiais?
Tanto a aceitação como a rejeição de um dado texto para o cânon foi
influenciada por decisão humana. Isto vem desde que os concílios existem
e acontece até os dias de hoje. No século XIX, apareceu o famoso "Livro
de Mórmon", que só foi aceito por um ramo do protestantismo e foi e
ainda é ignorado ou criticado por todos os demais. Isto vem de longe.
O cânon aceitou, por exemplo, a Epístola aos Hebreus, que todos os
entendidos sabem, há mais de mil anos, que não foi escrita por Paulo.
Uma forjadura óbvia e de autor desconhecido, mas esta obra de autor
desconhecido está em todas as bíblias. Todos os entendidos sabem que
Mateus não escreveu o evangelho a ele atribuído, pois ele morrera há
muito, mas, ainda assim, existe o evangelho segundo Mateus. Todos os
entendidos sabem que os quatro evangelhos são relatos de segunda ou
terceira mão. João não escreveu o seu evangelho.
O livro do Apocalipse teve a feroz oposição dos Papas em Roma, que
sempre pressionaram para a sua retirada do cânon. Ele chegou a ser
retirado, mas o Concílio de Cartago, em 397, o recolocou de volta ao
cânon. Sim, o livro do Apocalipse foi colocado, depois retirado e depois
recolocado na Bíblia.
O livro "Pastor de Hermas" foi considerado por Clemente de Alexandria,
Tertuliano, Santo Irineu e Orígenes como inspirado. Os entendidos acham
que Hermas é o homem citado por S. Paulo na Epístola aos Romanos, no seu
final. Este livro era largamente lido nas igrejas cristãs da Grécia. No
século V, o Papa Gelásio coloca tal livro entre os apócrifos. Uma
decisão que ainda perdura. Uma farsa ficou e, ao mesmo tempo, uma obra
de origem genuína saiu do cânon.
No século XVI, Martinho Lutero exigiu a retirada da "Epístola de São
Tiago", do cânon bíblico. Lutero chamou tal livro de "Carta de palha".
Também no século XVI, João Calvino exigiu a retirada do livro do
Apocalipse do cânon bíblico. Ao contrário da decisão do Papa Gelásio,
estas exigências, tanto de Lutero, como de Calvino, deram em nada. A
colocação de um texto na Bíblia de um dado ramo do cristianismo depende
da tradição e das necessidades terrenas.
4-Por que as Bíblias protestantes têm menos livros que as Bíblias católicas?
O citado Concílio de Florença em 1442 manteve a decisão, já do século
IV, no Concílio de Cartago, em 397 D.C., de ter uma bíblia católica com
76 livros. Com a chamada Reforma Protestante, no século XVI, a Igreja
Católica, através do Concílio de Trento, reduziu a Bíblia católica para
73 livros, decisão ainda em vigor nos dias de hoje.
Nesta redução da Bíblia, a Igreja Católica, pelas mãos de seu clero,
mostrou que o mundo é quem decide o cânon. Assim, saiu da bíblia
católica o livro 2 Esdras, que condena fortemente a reza pelos mortos,
ou o pedido de coisas vindas dos mortos. Uma clara condenação do culto
aos santos e reza pelos mortos no purgatório. Por outro lado, o mesmo
Concílio de Trento manteve no cânon da Bíblia católica o livro 2
Macabeus, que claramente fala em rezas e sacrifícios pelos mortos. Não
tem o menor sentido a ideia de que o Concílio de Trento tenha colocado
livros na Bíblia católica. Livros como 1 e 2 Macabeus já estavam na
Bíblia católica muito antes do Concílio de Trento. Há mais de mil
bíblias do século XV hoje em museus e que foram impressas, e elas todas
têm Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, por exemplo.
Quanto aos protestantes, apenas no século XVIII é que eles passaram a
ter um relativo entendimento sobre qual Bíblia afinal defendiam. Eles
cortaram a sua Bíblia para 66 livros. No caso do Novo Testamento, eles
mantiveram a mesma lista de livros estabelecida no Concílio de Cartago,
em 397. Os protestantes ignoraram as sugestões de Lutero e Calvino e
simplesmente seguiram o mesmo cânon que a Igreja Católica usava desde
397.
Quanto ao Antigo Testamento, as denominações protestantes decidiram
adotar o mesmo cânon estabelecido pelo Sínodo judaico de Jamnia em 100
D.C. Este Sínodo judaico não teve a presença de nenhum cristão das
várias correntes de cristianismo, que já existiam no ano 100 D.C. Tal
sínodo rejeitou como apócrifos todos os livros escritos após o ano 300
A.C. ou que não tivessem sido escritos originalmente em hebraico ou que
tivessem sido escritos fora da Palestina. Na verdade, os judeus, até o
citado Sínodo de Jamnia, usavam uma variedade de textos canônicos.
Nas cavernas de Cunrã há escritos do livro de Tobias, que é canônico
segundo a bíblia católica. Nas mesmas cavernas de Cunrã encontraram-se
fragmentos dos livros Enoque e Testamento de Levi, que jamais fizeram
parte do cânon, quer católico quer protestante. Não tem sentido se dizer
que os judeus nos tempos de Jesus rejeitavam Macabeus, Judite, Enoque.
Isto só aconteceu no citado Sínodo Judaico de Jamnia, que só foi
realizado no ano 100 D.C., quando o cristianismo não só estava já
consolidado, como também já dividido.
A rejeição de 1 Macabeus e Judite também foi influenciada pela política
mundana. Ambos os livros citados colocam a rebelião armada, contra um
opressor, como sagrada e abençoada por Deus. No século XVIII, as nações
protestantes queriam seus povos dominados quietos. É notório que, na
luta pela independência americana, os católicos tiveram uma participação
na luta muito maior que a sua participação na população americana. As
sucessivas rebeliões na Irlanda tinham sempre católicos, que diziam
seguir o dito nos livros 1 e 2 Macabeus. Tanto uma necessidade de se ter
uma sanção dos judeus, como necessidades políticas mundanas, levaram ao
fato das bíblias protestantes, desde a segunda metade do século XVIII,
terem 66 livros.
Em suma, a primeira Bíblia cristã tinha 76 livros. Isto foi estabelecido
por um concílio. O Concílio de Trento reduziu a Bíblia católica para 73
livros, retirando do cânon livros que condenassem explicitamente
orações para os mortos. Ao mesmo tempo o mesmo concílio manteve 2
Macabeus que apoia rezas pelos mortos.
Os protestantes não tinham uma bíblia única que seguir. Levou mais de
300 anos para os protestantes terem uma bíblia única. A redução tanto se
deveu a fatores políticos, como uma busca de sanção judaica, como a
rejeição de orações pelos mortos, apoiadas por 2 Macabeus.
Pouco ou nada houve de busca por verdade em tal redução. Os entendidos
sabem que a Epístola aos Hebreus é uma farsa, pois não foi escrita pelo
apóstolo Paulo. Ela segue no cânon católico e protestante. No mesmo Novo
Testamento foi excluído "Pastor de Hermas", que não foi uma forjadura e
foi de fato escrito por Hermas.
No Antigo Testamento, a mesma coisa se repete. Os protestantes alegam
rejeitar 1 Macabeus por ele ser supostamente falso. No entanto, 1
Macabeus tem indiscutível base histórica. O evento descrito no livro, a
invasão de Israel, de fato aconteceu. Judas Macabeu de fato existiu. Nem
por ser pelo menos em parte verdade, 1 Macabeus faz parte das bíblias
protestantes. Por outro lado, nestas mesmas bíblias protestantes, há o
livro de Gênesis que tem figuras como Adão, Eva, Caim, Abel, Noé; todas
tão verdadeiras quanto o Super-homem ou a Mulher-Maravilha. A invasão de
Israel descrita em 1 Macabeus de fato aconteceu, mas ela não faz parte
das bíblias protestantes. O dilúvio universal e sua arca de Noé, com
mais de 1.000.000 de espécies de plantas cuidadas apenas pela pequena
família de Noé, nunca aconteceu, mas, mesmo assim, Gênesis está tanto
nas Bíblias protestantes, como nas Bíblias católicas. Na Bíblia, Jonas
fica dias vivo num peixe, mas Judas Macabeu, que de fato existiu, não
aparece nas bíblias protestantes. Aonde a busca pela verdade?
Como escrevi antes, o cânon depende da tradição e das necessidades
terrenas. A Igreja católica manteve 2 Macabeus na bíblia pois ele mantém
a base bíblica para o purgatório e as missas pelos mortos. A mesma
Igreja Católica excluiu do cânon o livro 2 Esdras, pois ele condenava
rezas pelos mortos. Os protestantes excluíram 1 Macabeus pois ele
supostamente apoiava rebeliões irlandesas, mas mantiveram as cartas de
Paulo, com seu apoio à escravidão e submissão de mulheres, e fizeram o
mesmo com uma farsa, como a Epístola aos Hebreus.
O cânon, tanto católico como protestante, é de origem e necessidade
humana. Ambos os cânones foram feitos pensando neste mundo. Os
protestantes simplesmente não precisavam de uma bíblia que tenha livros
apoiando rebeliões, como 1 Macabeus, ou apoiando rezas pelos mortos,
como 2 Macabeus. Por outro lado, os católicos não precisavam de livros
que condenassem orações pelos mortos, como 2 Esdras. Por isto, a bíblia
católica saiu de 76 para 73 livros e a bíblia protestante caiu ainda
mais, para 66 livros.
Conclusão:
No momento em que pastores protestantes aparecem na TV garantindo que
doenças mentais e físicas se devem à ação de demônios ou,
eufemisticamente, "encostos", não se pode deixar de notar em quanto a
Bíblia pode ser mal usada. A Bíblia é trabalho humano e, como tal, não
está isenta de críticas. Como livro de ciência, a bíblia é absurda e
falha, mesmo considerando o tempo em que foi escrita. Como livro de
história, a bíblia mistura fato com fantasias, não sendo nem de longe
infalível. Como livro religioso, a bíblia tem sido a fonte suposta ou
real de dezenas de milhares de seitas, que não raro são apenas negócios
fantasiados de religião. Devemos, sim, ler a bíblia, mas nunca com fé
cega e falta de espírito crítico.
segunda-feira, 8 de maio de 2023
Como foi definido o cânon da Bíblia
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Muito bom texto Fernando....como todos os outros....sou o Aronax lá do CC.
ResponderExcluirObrigado, mas, neste caso, apenas revisei um texto antigo.
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