quarta-feira, 22 de março de 2023

Minha desconversão

 Sou um ex-católico e minha desconversão foi um processo lento e indolor se comparada às histórias traumáticas que a gente encontra na Internet. Minha família era, e ainda é, profundamente católica, mas a religião nunca foi baseada no terrível medo do Inferno. Tampouco nos disseram que não temos nenhum valor diante de Deus e que a “salvação” é para poucos.

 Na parede das salas de aula dos colégios religiosos onde estudei, havia um quadrinho com a inscrição “Deus me vê”, tipo um Big Brother, mas o descreviam como um deus benevolente e que perdoava. Era realmente preciso insistir em ir para o inferno (embora eu não entendesse por que alguém faria isso).

No entanto, era preciso ir à missa todos os domingos e, todo dia à noite, nos ajoelhávamos em casa para rezar o terço, sem falar nas orações antes de dormir, confissões frequentes e aulas de religião.

Até meus 12 anos, eu me sentia confortável com minha fé. Não gostava de ir à igreja, não gostava de rezar o terço, mas, em geral, o assunto não me incomodava.

Eu tinha longas discussões comigo mesmo em que a parte racional da minha mente tentava explicar as coisas de forma racional enquanto que a parte religiosa apelava para a fé. Por longos anos, os debates terminavam em “Bom, deve haver uma explicação, mas eu sou muito limitado para entender. Quando eu morrer e for para o céu, tudo ficará claro”.

Por exemplo, sempre me incomodou que “é melhor acreditar sem ter visto do que ver e só então acreditar”. Ou que crianças que morrem sem ser batizadas vão para um lugar mal definido chamado Limbo em vez de direto para o Céu. Ou que Jesus teve que morrer por causa dos meus pecados (isto me fazia sentir culpado, de certa forma, embora eu não entendesse que pecados seriam esses).

Disseram-nos que acreditar em Adão e Eva e nas histórias do Gênesis não era obrigatório; foi apenas o jeito que Deus usou para explicar as coisas a nossos ancestrais primitivos. Entretanto, o “Pecado Original” era um dogma (e eu não consegui entender como eu poderia já nascer culpado por alguma coisa que eu não tinha feito). Tentava não pensar muito a respeito, mas sentia que havia algo de estranho quanto aos profetas e seus escritos divinamente inspirados. Por que a inspiração parou? Como saber se aquilo tudo era verdade? Eu tinha que confessar meus pecados frequentemente – e esperava-se que eu me arrependesse sinceramente deles e estivesse firmemente disposto a não pecar mais. Só que eu sabia muito bem que acabaria fazendo tudo de novo, mais cedo ou mais tarde.

Esta certeza só cresceu quando veio a adolescência e minha mente vivia cheia de pensamentos “impuros”. Eu passava algum tempo torturado por sentimentos de culpa até ter a coragem de confessar tudo. Saía de lá me sentindo limpo e começava a “pecar” novamente. Depois de repetir este ciclo por muitos anos, concluí que confessar não fazia sentido. E, como eu não tinha me confessado, não podia comungar. Um dia, me dei conta de que já fazia mais de dez anos que eu não me confessava nem comungava. Por sorte, eu ia à missa sozinho e minha família nunca percebeu.

Nota: se vocês aí não forem católicos, talvez não façam ideia de quão ridículo e desagradável é a confissão. Ou seja, ajoelhar-se diante de um completo estranho e lhe sussurrar seus pensamentos mais íntimos na esperança de que ele não ache que você foi longe demais para merecer a absolvição. Daí, ele vai sussurrar de volta no seu ouvido, com perdigotos e mau hálito, conselhos padronizados e uma lista de orações para rezar como penitência. Senhoras idosas, entretanto, parecem gostar disso. Deve ser, para elas, um psicanalista gratuito. Uma plateia cativa, disposta a ouvir todos os seus probleminhas e preocupações. Como tendem a ser meio surdas, falam alto demais e as pessoas em volta têm que fingir que não estão escutando.

Eu tinha um livro de orações em que cada uma era acompanhada de seu valor em indulgências, ou seja, se você rezasse uma oração de “um dia”, seu tempo no Purgatório seria reduzido de um dia. Havia algumas que valiam semanas e mesmo meses, portanto eu só rezava estas e me perguntava por que perder tempo com as de um dia e por que elas faziam parte do livro.

Também me disseram que eu deveria me sentir emocionado, arrebatado, durante a missa, já que ela era a renovação do sacrifício de Jesus na cruz. Por alguma razão, tudo o que eu sentia era tédio (e culpa por esse tédio).

Bem, a lista poderia continuar indefinidamente. Entretanto, minha fé nunca vacilava. A religião era, para mim, um fato da vida assim como escovar os dentes. Muito chata, certamente, mas necessária e inevitável.

Além disto, eu não tinha contato com o ateísmo. Sabia que existiam descrentes e outras religiões, mas nunca fui exposto a ideias racionais. Uma única vez, quando eu tinha uns 10 anos, li algo num jornal sobre a possibilidade de os discípulos terem roubado o corpo de Jesus do túmulo para dar a impressão de que ele tinha ressuscitado. Nada de mais. Na verdade, uma citação dos evangelhos, mas eu fiquei tão chocado que a ideia foi enterrada na minha mente e só voltou à superfície décadas depois. Até onde eu conseguia perceber, havia pecadores, mas não havia contradições. O que me diziam em casa era confirmado na escola, nas ruas, nos jornais, na TV.

As dúvidas que a parte sã da minha mente vivia trazendo à tona eram rapidamente varridas para baixo do tapete e esquecidas. Eu vivia numa espécie de “Show de Truman”, sem nenhuma esquisitice para me fazer suspeitar de que minha fé fosse uma ilusão. Por outro lado, embora assumisse minha fé sem problemas em família, eu tinha vergonha de me assumir como católico em público. Quando perguntavam qual a minha religião, eu resmungava algo como “sou católico, eu acho”. Entrava na igreja pela porta lateral, menos visível. Fazer proselitismo nem me passava pela cabeça.

Embora eu acreditasse na firmeza da minha fé, eu achava desconfortável impingi-la aos outros. Não me parecia ter nada de convincente o bastante para lhes dizer, portanto deixava para lá. Como eu não entendia por que eu acreditava, não conseguia defender minhas convicções, embora nem pensasse em rejeitá-las.

Lá pelos meus vinte e tantos anos, vivendo em meio a pessoas com uma religião bem menos estrita que a minha, concluí que elas não estavam fazendo mal a ninguém e, por não acharem que aquilo que faziam era pecado, não iriam para o Inferno. Eu, por outro lado, não podia fazer como eles porque era pecado para mim e eu seria castigado por Deus.

Aos 12 anos, veio o primeiro golpe sério. O papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II e, tendo ele a mente mais aberta que seus antecessores, as pessoas começaram a discutir e reavaliar tudo. Ele morreu antes que o concílio terminasse e seu sucessor, Paulo VI, um conservador, tentou frear o movimento. Entretanto, seguiu-se um período de livre experimentação e muitas coisas mudaram. Parte dos católicos rejeitou as novidades e cismas deram origem a facções, algumas até negando a autoridade dos papas a partir dali. Minha família não gostou muito dessas ideias, mas seguiu em frente. Na minha cabeça, entretanto, a Rocha Inabalável de 2 mil anos tinha se rachado. Tentei não pensar muito a respeito, mas a semente da dúvida foi plantada.

Passei a procurar igrejas com padres mais velhos, que resistiam às mudanças na liturgia. Por volta dos meus 40 anos, as igrejas pentecostais, até então uma minoria no Brasil, começaram a proliferar e a atrair católicos. Outros católicos reagiram criando o Movimento Carismático para atraí-los de volta. Eu achava os pentecostais ridículos, mas os carismáticos, uma caricatura dos pentecostais, eram ainda pior.

Vi tais inovações como um desrespeito à tradição e me irritavam tanto que, inicialmente, eu passava a missa tentando pensar em outras coisas e cochilava durante os longos e chatos sermões. As músicas já não podiam mais ser chamadas de hinos. Eram acompanhadas por bandas com guitarras e percussão e pareciam inspiradas no Xou da Xuxa. A audiência (não mais a assembleia) dançava e batia palmas. Bem diferente dos hinos solenes acompanhados de órgão e incenso da minha infância.

Canções bobinhas e letras tolas que tentavam transmitir mensagens “bonitinhas”. A palavra “amor” era repetida tantas vezes ao longo da missa que perdia o sentido e me irritava.

Uma das coisas que eu detestava era ter que dar as mãos às pessoas de cada lado enquanto cantávamos o Pai Nosso. Eu até gostaria se fossem meninas bonitas, mas, por alguma razão, meninas bonitas pareciam ter coisas melhores a fazer que ir à missa, portanto eu acabava segurando a mão de outros homens. Acabou que eu passei a sair do meu lugar e ficar no corredor quando chegava esse momento. Não adiantava cruzar os braços e fingir que estava distraído. Eles ficavam me cutucando e insistindo em segurar a minha mão.

Durante o sermão, o padre sussurrava com uma voz de “latin lover” e, de repente, começava a gritar. Eu detestava sua voz fingida, detestava seus gritos. Cheiravam a motivação, a lavagem cerebral. E eu detesto técnicas de motivação. Se ele precisava de tais truques, talvez sua mensagem não fosse tão convincente assim.

Dava para suportar as missas chatas dos padres mais velhos. Pelo menos, não eram revoltantes. Mas os padres jovens sempre vinham com novas ideias para “animar” a celebração e incentivar a participação de todos. Aos poucos, eu comecei a fazer o, até então, impensável: ir à missa, mas ir embora quando via que era um padre novidadeiro. Ao longo de 40 anos, eu nunca tinha faltado a uma missa e agora deixava de assistir uma depois da outra. Eu dizia a mim mesmo: “Bom, eu tentei. Vim até a igreja. Mas não tenho que aturar isto”.

A partir daí, ficou mais fácil encarar minhas dúvidas. Passei a questionar o que ouvia em vez de tentar cochilar. Anotava minhas ideias e as coisas que me pareciam absurdas. Um dia, sentei-me ao computador e comecei a desenvolver as anotações num documento que cada vez ficava maior.

Eu ainda me via como católico, mas a ideia de inferno, por exemplo, parecia-me inaceitável. Se realmente houvesse um inferno, estaria vazio. Também era contra a proibição do controle da natalidade. Qual o problema moral com pílulas e camisinhas? Por que tínhamos que continuamente louvar a Deus por suas supostas bondades? Que bondades? Com que direito ele tinha me jogado neste vale de lágrimas sem perguntar se eu aceitava? Por que eu tinha que me submeter a um teste que eu não tinha pedido, sendo que, se fracassasse, seria eternamente punido?

Por que tinha que acreditar num deus que nunca vi só porque algumas pessoas diziam que ele existia? Por que ele não se dirigia diretamente a mim e me dizia o que queria? Por que havia tantas religiões, todas elas se declarando a única verdadeira?

Eu ainda não estava pronto para abandonar a fé, mas comecei a achar que os ensinamentos de Jesus tinham sido mal interpretados pela Igreja ao longo dos séculos. Na época, eu conhecia muito pouco da Bíblia exceto pelos trechos lidos durante as missas. O Antigo Testamento não era importante, para fins de doutrina, e o Novo Testamento parecia mais ou menos coerente.

O que acelerou o processo foi encontrar na Internet, por acaso, um site dedicado à Deusa Mãe e sobre como a sociedade patriarcal tinha pervertido a humanidade. Havia longos textos dedicados aos deuses e deusas da Babilônia e como eles tinham originado Yaveh, o deus dos judeus. Esta frase foi fundamental: “Tendemos a achar que Yaveh se manifestou aos hebreus em algum ponto de sua história, mas, na verdade, ele é uma mistura dos vários deuses que eles encontraram e adotaram ao longo de sua vida nomádica. Ele pode ser rastreado até El, o deus de Ur onde Abraão nasceu. Mas ele também é Asherah ou Ishtar e muitos outros, todos somados. Isto porque os hebreus não eram monoteístas. Embora se comprometessem a adorar apenas a Yaveh, eles aceitavam a existência dos outros deuses. Em troca desta adoração exclusiva, Yaveh lhes daria proteção contra os outros povos e seus deuses”.

O texto também citava passagens da Bíblia em que Deus se dizia com ciúme dos outros deuses, além de seus atos e comandos violentos e sanguinários. Achei isto interessante e comecei a pesquisar o assunto mais a fundo.

Também descobri que não estava sozinho. Durante séculos, houve ateus e eles tiveram ideias que nunca tinham me ocorrido. Percebi que a história da Igreja Católica não era nada santa. A Inquisição e as Cruzadas me apareceram sob nova luz. A Bíblia se mostrou um livro violento, cheio de sangue e contradições, escrita por tribos bárbaras da Idade do Bronze, não algo inspirado por Deus. Ou seja, nada de “O livro bom”.

Finalmente, o peso acumulado do que eu tinha descoberto e dos meus próprios pensamentos tornou impossível continuar fingindo para mim mesmo que eu ainda era católico. Não foi repentino e sim mais como um lento despertar, em que sonho e realidade coexistem por algum tempo. Mas é difícil abandonar velhos hábitos e eu ainda sentia que tinha que ir à missa todos os domingos. Não queria cortar esse último laço. Certo domingo, entretanto, já pronto para sair, desabou uma chuva forte. Eu parei para pensar e decidi que não queria enfrentar chuva e vento para chegar à igreja e ficar por uma hora todo molhado naquele lugar quente, lotado e abafado, ouvindo baboseiras que só me irritavam. Não fui naquele dia e nunca mais fui.

Lembro-me de que, naquele dia, eu me sentei e perguntei: “Então é isso? Toda uma vida indo à igreja, todas aquelas missas e orações e sentimentos de culpa … acabaram-se? Tudo aquilo em que eu acreditava?”

Não foi traumático, apenas a melancolia de perceber que algo havia terminado para sempre, algo com que eu estava tão acostumado. Não senti falta de Deus. Eu tinha rezado para ele todos os dias porque achava que era obrigatório e pedido favores na esperança de que ele talvez me ouvisse, mas nunca tive nenhuma ligação emocional. Ele tinha sido sempre um estranho, distante e silencioso (mas sinto falta de Papai Noel …).

Encontrei muitos sites ateus na Internet, muitos fóruns com debates interessantes. Toda essa riqueza de fatos e ideias e eu tinha passado 42 anos da minha vida na mais completa ignorância!

Preferi não dizer nada à minha família. Eles não entenderiam e poderia haver conflitos. Além disto, meus pais já eram idosos e com problemas de saúde. Não vi motivos para estressá-los. E também porque, para eles, a fé era confortadora. Mesmo nos piores momentos de seus problemas de saúde, eles diziam coisas como “Se eu aceito as coisas boas que Deus me manda, tenho que aceitar também as ruins”. Ou “Jesus sofreu tanto por mim! Eu quero compartilhar seu sofrimento”. E assim por diante. Eu não queria tirar isto deles (e nem conseguiria). Não queria angustiá-los no fim de suas vidas.

Quanto às outras pessoas, no início, espantado com minhas descobertas – e também com raiva por ter me deixado enganar por tanto tempo – eu queria contar para todo mundo, despertá-los, fazê-los ver o óbvio. Tive longas conversas com gente religiosa na Internet e com colegas de trabalho. Foi muito instrutivo e me ajudou a refinar meus argumentos, mas também me mostrou que eu era uma exceção.

Um crente que está feliz com sua fé não se desconverterá. Se eles acreditam em que dois mais dois são cinco, podemos no máximo fazê-los admitir que a resposta parece ser quatro, sim, mas isto apenas porque nosso entendimento é limitado demais para percebermos as razões superiores pelas quais a resposta é cinco. Esta “explicação” vai aliviar qualquer susto que tenhamos lhes causado e eles ficarão felizes de novo. Se insistirmos, eles vão despejar coisas sem sentido tiradas da Bíblia e nos dizer que é melhor nos arrependermos antes que seja tarde. As perguntas embaraçosas serão ignoradas, como se estivéssemos falando com um surdo.

Também é perturbador quando algum conhecido, até então perfeitamente razoável, entra para uma seita pentecostal e aparece com uma bíblia em baixo do braço distribuindo folhetos de sua igreja. Assusta ver quão certos eles estão de sua fé. Há algo de lunático em sua calma convicção. O tipo de loucura que faz pessoas jogarem aviões contra prédios.

Publicado originalmente na seção de “Deconversion Stories” do site “Positive Atheism”.