Sou um ex-católico e minha desconversão foi um processo lento e
indolor se comparada às histórias traumáticas que a gente encontra
na Internet. Minha família era, e ainda é, profundamente católica,
mas a religião nunca foi baseada no terrível medo do Inferno.
Tampouco nos disseram que não temos nenhum valor diante de Deus e
que a “salvação” é para poucos.
Na parede das salas
de aula dos colégios religiosos onde estudei, havia um quadrinho com
a inscrição “Deus me vê”, tipo um Big Brother, mas o
descreviam como um deus benevolente e que perdoava. Era realmente
preciso insistir em ir para o inferno (embora eu não entendesse por
que alguém faria isso).
No entanto, era
preciso ir à missa todos os domingos e, todo dia à noite, nos
ajoelhávamos em casa para rezar o terço, sem falar nas orações
antes de dormir, confissões frequentes e aulas de religião.
Até meus 12 anos,
eu me sentia confortável com minha fé. Não gostava de ir à
igreja, não gostava de rezar o terço, mas, em geral, o assunto não
me incomodava.
Eu tinha longas
discussões comigo mesmo em que a parte racional da minha mente
tentava explicar as coisas de forma racional enquanto que a parte
religiosa apelava para a fé. Por longos anos, os debates terminavam
em “Bom, deve haver uma explicação, mas eu sou muito limitado
para entender. Quando eu morrer e for para o céu, tudo ficará
claro”.
Por exemplo, sempre
me incomodou que “é melhor acreditar sem ter visto do que ver e só
então acreditar”. Ou que crianças que morrem sem ser batizadas
vão para um lugar mal definido chamado Limbo em vez de direto para o
Céu. Ou que Jesus teve que morrer por causa dos meus pecados (isto
me fazia sentir culpado, de certa forma, embora eu não entendesse
que pecados seriam esses).
Disseram-nos que
acreditar em Adão e Eva e nas histórias do Gênesis não era
obrigatório; foi apenas o jeito que Deus usou para explicar as
coisas a nossos ancestrais primitivos. Entretanto, o “Pecado
Original” era um dogma (e eu não consegui entender como eu poderia
já nascer culpado por alguma coisa que eu não tinha feito). Tentava
não pensar muito a respeito, mas sentia que havia algo de estranho
quanto aos profetas e seus escritos divinamente inspirados. Por que a
inspiração parou? Como saber se aquilo tudo era verdade? Eu tinha
que confessar meus pecados frequentemente – e esperava-se que eu me
arrependesse sinceramente deles e estivesse firmemente disposto a não
pecar mais. Só que eu sabia muito bem que acabaria fazendo tudo de
novo, mais cedo ou mais tarde.
Esta certeza só
cresceu quando veio a adolescência e minha mente vivia cheia de
pensamentos “impuros”. Eu passava algum tempo torturado por
sentimentos de culpa até ter a coragem de confessar tudo. Saía de
lá me sentindo limpo e começava a “pecar” novamente. Depois de
repetir este ciclo por muitos anos, concluí que confessar não fazia
sentido. E, como eu não tinha me confessado, não podia comungar. Um
dia, me dei conta de que já fazia mais de dez anos que eu não me
confessava nem comungava. Por sorte, eu ia à missa sozinho e minha
família nunca percebeu.
Nota: se
vocês aí não forem católicos, talvez não façam ideia de quão
ridículo e desagradável é a confissão. Ou seja, ajoelhar-se
diante de um completo estranho e lhe sussurrar seus pensamentos mais
íntimos na esperança de que ele não ache que você foi longe
demais para merecer a absolvição. Daí, ele vai sussurrar de volta
no seu ouvido, com perdigotos e mau hálito, conselhos padronizados e
uma lista de orações para rezar como penitência. Senhoras idosas,
entretanto, parecem gostar disso. Deve ser, para elas, um
psicanalista gratuito. Uma plateia cativa, disposta a ouvir todos os
seus probleminhas e preocupações. Como tendem a ser meio surdas,
falam alto demais e as pessoas em volta têm que fingir que não
estão escutando.
Eu tinha um livro de
orações em que cada uma era acompanhada de seu valor em
indulgências, ou seja, se você rezasse uma oração de “um dia”,
seu tempo no Purgatório seria reduzido de um dia. Havia algumas que
valiam semanas e mesmo meses, portanto eu só rezava estas e me
perguntava por que perder tempo com as de um dia e por que elas
faziam parte do livro.
Também me disseram
que eu deveria me sentir emocionado, arrebatado, durante a missa, já
que ela era a renovação do sacrifício de Jesus na cruz. Por alguma
razão, tudo o que eu sentia era tédio (e culpa por esse tédio).
Bem, a lista poderia
continuar indefinidamente. Entretanto, minha fé nunca vacilava. A
religião era, para mim, um fato da vida assim como escovar os
dentes. Muito chata, certamente, mas necessária e inevitável.
Além disto, eu não
tinha contato com o ateísmo. Sabia que existiam descrentes e outras
religiões, mas nunca fui exposto a ideias racionais. Uma única vez,
quando eu tinha uns 10 anos, li algo num jornal sobre a possibilidade
de os discípulos terem roubado o corpo de Jesus do túmulo para dar
a impressão de que ele tinha ressuscitado. Nada de mais. Na verdade,
uma citação dos evangelhos, mas eu fiquei tão chocado que a ideia
foi enterrada na minha mente e só voltou à superfície décadas
depois. Até onde eu conseguia perceber, havia pecadores, mas não
havia contradições. O que me diziam em casa era confirmado na
escola, nas ruas, nos jornais, na TV.
As dúvidas que a
parte sã da minha mente vivia trazendo à tona eram rapidamente
varridas para baixo do tapete e esquecidas. Eu vivia numa espécie de
“Show de Truman”, sem nenhuma esquisitice para me fazer suspeitar
de que minha fé fosse uma ilusão. Por outro lado, embora assumisse
minha fé sem problemas em família, eu tinha vergonha de me assumir
como católico em público. Quando perguntavam qual a minha religião,
eu resmungava algo como “sou católico, eu acho”. Entrava na
igreja pela porta lateral, menos visível. Fazer proselitismo nem me
passava pela cabeça.
Embora eu
acreditasse na firmeza da minha fé, eu achava desconfortável
impingi-la aos outros. Não me parecia ter nada de convincente o
bastante para lhes dizer, portanto deixava para lá. Como eu não
entendia por que eu acreditava, não conseguia defender minhas
convicções, embora nem pensasse em rejeitá-las.
Lá pelos meus vinte
e tantos anos, vivendo em meio a pessoas com uma religião bem menos
estrita que a minha, concluí que elas não estavam fazendo mal a
ninguém e, por não acharem que aquilo que faziam era pecado, não
iriam para o Inferno. Eu, por outro lado, não podia fazer como eles
porque era pecado para mim e eu seria castigado por Deus.
Aos 12 anos, veio o
primeiro golpe sério. O papa João XXIII convocou o Concílio
Vaticano II e, tendo ele a mente mais aberta que seus antecessores,
as pessoas começaram a discutir e reavaliar tudo. Ele morreu antes
que o concílio terminasse e seu sucessor, Paulo VI, um conservador,
tentou frear o movimento. Entretanto, seguiu-se um período de livre
experimentação e muitas coisas mudaram. Parte dos católicos
rejeitou as novidades e cismas deram origem a facções, algumas até
negando a autoridade dos papas a partir dali. Minha família não
gostou muito dessas ideias, mas seguiu em frente. Na minha cabeça,
entretanto, a Rocha Inabalável de 2 mil anos tinha se rachado.
Tentei não pensar muito a respeito, mas a semente da dúvida foi
plantada.
Passei a procurar
igrejas com padres mais velhos, que resistiam às mudanças na
liturgia. Por volta dos meus 40 anos, as igrejas pentecostais, até
então uma minoria no Brasil, começaram a proliferar e a atrair
católicos. Outros católicos reagiram criando o Movimento
Carismático para atraí-los de volta. Eu achava os pentecostais
ridículos, mas os carismáticos, uma caricatura dos pentecostais,
eram ainda pior.
Vi tais inovações
como um desrespeito à tradição e me irritavam tanto que,
inicialmente, eu passava a missa tentando pensar em outras coisas e
cochilava durante os longos e chatos sermões. As músicas já não
podiam mais ser chamadas de hinos. Eram acompanhadas por bandas com
guitarras e percussão e pareciam inspiradas no Xou da Xuxa. A
audiência (não mais a assembleia) dançava e batia palmas. Bem
diferente dos hinos solenes acompanhados de órgão e incenso da
minha infância.
Canções bobinhas e
letras tolas que tentavam transmitir mensagens “bonitinhas”. A
palavra “amor” era repetida tantas vezes ao longo da missa que
perdia o sentido e me irritava.
Uma das coisas que
eu detestava era ter que dar as mãos às pessoas de cada lado
enquanto cantávamos o Pai Nosso. Eu até gostaria se fossem meninas
bonitas, mas, por alguma razão, meninas bonitas pareciam ter coisas
melhores a fazer que ir à missa, portanto eu acabava segurando a mão
de outros homens. Acabou que eu passei a sair do meu lugar e ficar no
corredor quando chegava esse momento. Não adiantava cruzar os braços
e fingir que estava distraído. Eles ficavam me cutucando e
insistindo em segurar a minha mão.
Durante o sermão, o
padre sussurrava com uma voz de “latin lover” e, de repente,
começava a gritar. Eu detestava sua voz fingida, detestava seus
gritos. Cheiravam a motivação, a lavagem cerebral. E eu detesto
técnicas de motivação. Se ele precisava de tais truques, talvez
sua mensagem não fosse tão convincente assim.
Dava para suportar
as missas chatas dos padres mais velhos. Pelo menos, não eram
revoltantes. Mas os padres jovens sempre vinham com novas ideias para
“animar” a celebração e incentivar a participação de todos.
Aos poucos, eu comecei a fazer o, até então, impensável: ir à
missa, mas ir embora quando via que era um padre novidadeiro. Ao
longo de 40 anos, eu nunca tinha faltado a uma missa e agora deixava
de assistir uma depois da outra. Eu dizia a mim mesmo: “Bom, eu
tentei. Vim até a igreja. Mas não tenho que aturar isto”.
A partir daí, ficou
mais fácil encarar minhas dúvidas. Passei a questionar o que ouvia
em vez de tentar cochilar. Anotava minhas ideias e as coisas que me
pareciam absurdas. Um dia, sentei-me ao computador e comecei a
desenvolver as anotações num documento que cada vez ficava maior.
Eu ainda me via como
católico, mas a ideia de inferno, por exemplo, parecia-me
inaceitável. Se realmente houvesse um inferno, estaria vazio. Também
era contra a proibição do controle da natalidade. Qual o problema
moral com pílulas e camisinhas? Por que tínhamos que continuamente
louvar a Deus por suas supostas bondades? Que bondades? Com que
direito ele tinha me jogado neste vale de lágrimas sem perguntar se
eu aceitava? Por que eu tinha que me submeter a um teste que eu não
tinha pedido, sendo que, se fracassasse, seria eternamente punido?
Por que tinha que
acreditar num deus que nunca vi só porque algumas pessoas diziam que
ele existia? Por que ele não se dirigia diretamente a mim e me dizia
o que queria? Por que havia tantas religiões, todas elas se
declarando a única verdadeira?
Eu ainda não estava
pronto para abandonar a fé, mas comecei a achar que os ensinamentos
de Jesus tinham sido mal interpretados pela Igreja ao longo dos
séculos. Na época, eu conhecia muito pouco da Bíblia exceto pelos
trechos lidos durante as missas. O Antigo Testamento não era
importante, para fins de doutrina, e o Novo Testamento parecia mais
ou menos coerente.
O que acelerou o
processo foi encontrar na Internet, por acaso, um site dedicado à
Deusa Mãe e sobre como a sociedade patriarcal tinha pervertido a
humanidade. Havia longos textos dedicados aos deuses e deusas da
Babilônia e como eles tinham originado Yaveh, o deus dos judeus.
Esta frase foi fundamental: “Tendemos a achar que Yaveh se
manifestou aos hebreus em algum ponto de sua história, mas, na
verdade, ele é uma mistura dos vários deuses que eles encontraram e
adotaram ao longo de sua vida nomádica. Ele pode ser rastreado até
El, o deus de Ur onde Abraão nasceu. Mas ele também é Asherah ou
Ishtar e muitos outros, todos somados. Isto porque os hebreus não
eram monoteístas. Embora se comprometessem a adorar apenas a Yaveh,
eles aceitavam a existência dos outros deuses. Em troca desta
adoração exclusiva, Yaveh lhes daria proteção contra os outros
povos e seus deuses”.
O texto também
citava passagens da Bíblia em que Deus se dizia com ciúme dos
outros deuses, além de seus atos e comandos violentos e
sanguinários. Achei isto interessante e comecei a pesquisar o
assunto mais a fundo.
Também descobri que
não estava sozinho. Durante séculos, houve ateus e eles tiveram
ideias que nunca tinham me ocorrido. Percebi que a história da
Igreja Católica não era nada santa. A Inquisição e as Cruzadas me
apareceram sob nova luz. A Bíblia se mostrou um livro violento,
cheio de sangue e contradições, escrita por tribos bárbaras da
Idade do Bronze, não algo inspirado por Deus. Ou seja, nada de “O
livro bom”.
Finalmente, o peso
acumulado do que eu tinha descoberto e dos meus próprios pensamentos
tornou impossível continuar fingindo para mim mesmo que eu ainda era
católico. Não foi repentino e sim mais como um lento despertar, em
que sonho e realidade coexistem por algum tempo. Mas é difícil
abandonar velhos hábitos e eu ainda sentia que tinha que ir à missa
todos os domingos. Não queria cortar esse último laço. Certo
domingo, entretanto, já pronto para sair, desabou uma chuva forte.
Eu parei para pensar e decidi que não queria enfrentar chuva e vento
para chegar à igreja e ficar por uma hora todo molhado naquele lugar
quente, lotado e abafado, ouvindo baboseiras que só me irritavam.
Não fui naquele dia e nunca mais fui.
Lembro-me de que,
naquele dia, eu me sentei e perguntei: “Então é isso? Toda uma
vida indo à igreja, todas aquelas missas e orações e sentimentos
de culpa … acabaram-se? Tudo aquilo em que eu acreditava?”
Não foi traumático,
apenas a melancolia de perceber que algo havia terminado para sempre,
algo com que eu estava tão acostumado. Não senti falta de Deus. Eu
tinha rezado para ele todos os dias porque achava que era obrigatório
e pedido favores na esperança de que ele talvez me ouvisse, mas
nunca tive nenhuma ligação emocional. Ele tinha sido sempre um
estranho, distante e silencioso (mas sinto falta de Papai Noel …).
Encontrei
muitos sites ateus na Internet, muitos fóruns com debates
interessantes. Toda essa riqueza de fatos e ideias e eu tinha passado
42 anos da minha vida na mais completa ignorância!
Preferi
não dizer nada à minha família. Eles não entenderiam e poderia
haver conflitos. Além disto, meus pais já eram idosos e com
problemas de saúde. Não vi motivos para estressá-los. E também
porque, para eles, a fé era confortadora. Mesmo nos piores momentos
de seus problemas de saúde, eles diziam coisas como “Se eu aceito
as coisas boas que Deus me manda, tenho que aceitar também as
ruins”. Ou “Jesus sofreu tanto por mim! Eu quero compartilhar seu
sofrimento”. E assim por diante. Eu não queria tirar isto deles (e
nem conseguiria). Não queria angustiá-los no fim de suas vidas.
Quanto às outras
pessoas, no início, espantado com minhas descobertas – e também
com raiva por ter me deixado enganar por tanto tempo – eu queria
contar para todo mundo, despertá-los, fazê-los ver o óbvio. Tive
longas conversas com gente religiosa na Internet e com colegas de
trabalho. Foi muito instrutivo e me ajudou a refinar meus argumentos,
mas também me mostrou que eu era uma exceção.
Um crente que está
feliz com sua fé não se desconverterá. Se eles acreditam em que
dois mais dois são cinco, podemos no máximo fazê-los admitir que a
resposta parece ser quatro, sim, mas isto apenas porque nosso
entendimento é limitado demais para percebermos as razões
superiores pelas quais a resposta é cinco. Esta “explicação”
vai aliviar qualquer susto que tenhamos lhes causado e eles ficarão
felizes de novo. Se insistirmos, eles vão despejar coisas sem
sentido tiradas da Bíblia e nos dizer que é melhor nos
arrependermos antes que seja tarde. As perguntas embaraçosas serão
ignoradas, como se estivéssemos falando com um surdo.
Também é
perturbador quando algum conhecido, até então perfeitamente
razoável, entra para uma seita pentecostal e aparece com uma bíblia
em baixo do braço distribuindo folhetos de sua igreja. Assusta ver
quão certos eles estão de sua fé. Há algo de lunático em sua
calma convicção. O tipo de loucura que faz pessoas jogarem aviões
contra prédios.
Publicado originalmente na seção de “Deconversion
Stories” do site “Positive Atheism”.